domingo, 26 de dezembro de 2010

Redescobrindo um texto

Lembrei que eu curti muito esse. E, curiosamente, faz pouco mais de um ano que escrevi. Quase profecia, porque vivo a beleza das coisas que escrevi.


Sem medo

Estava me descobrindo um pouco ao caminhar ao sol. Sentia-me feliz
simplesmente por estar carregando uma torta de chocolate, parte de um
ritual que faço em cada manhã de aniversário de cada filho meu.
Lembrava então do primeiro parto, de como tinha ido alegre à
maternidade e de como não senti medo algum. Por nenhuma dor, pelo
desconhecido, por aquelas salas e pessoas que nos mexem e indagam e
nos dizem para esperar ou que chegou a hora.

Sem medo. Talvez seja a atitude que assumo diante da vida hoje e
também a um certo tempo. Algumas decisões implicaram num jeito
estranho de encarar o futuro, como se dele não precisasse esperar nada
que eu não estivesse construindo. Aliás, sem esperar futuro, porque em
certos momentos o fato de estar vivendo era suficiente para continuar.

Pequenas coisas. Dar aulas e ser tímida. Perdão. Separação e três
filhos. Declarar afeto na incerteza da reciprocidade. Mudar quando
necessário. Mestrado. Correr uma semana para entregar um projeto.
Investir em sonhos esperando torná-los concretos. Amar. Dizer não a
uma grana boa, porque era hora de espairecer.

Encontro assim um refúgio em minha alma, no lugar onde à noite observo
meus olhos travessos. E uma certeza engraçada, porque irracional e
assim, toda minha. Como dizer isso? É como saber que o caminho tem
dores e imperfeições e tristezas e perdas. Mas tem também tanta
beleza...

Quando encontro uma palavra amena. Quando alguém me beija. Se me perco
em um abraço e festejo aniversários. Por encontrar os amigos e beber
numa sexta-feira. Por saber que a vida é tanto e toda, e que ainda
vivi pouco. Porque adoro Jack Daniels e poesia sem métrica, ideias,
conversa à toa. Porque não sou definitiva e nem espero que nada seja.
Então sigo. Sem medo.

Carlota
10122009.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Sem medo

Às vezes o coração fica apertado de medo. Como um frágil coração de passarinho. Assustadiço. Mas, e se eu voar?

(para um jogador de polo)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Tanto

Dezembro pra mim é misto de melancolia e um contentamento, que se alternam praticamente até o Natal. Depois, volto ao normal, alternando entre humores mais variados.



Hoje, quando eu me encontrar com você,
beija o meu ouvido.
E quando eu ficar nua,
escuta minha pele, toca minha alma.
Não mostra seu desejo, assim, rapidamente.
Mostra devagar.
Pra não me assustar.
Porque hoje carrego comigo uma alegria,
uma saudade, uma falta.
E elas podem ir, assim, de repente.
Porque de repente eu me vi aqui, frente a você.
O que eu queria dizer, era o que mesmo?
De mim e você?
De você sem mim?
Ou de nós dois?
Uma hora isso passa.
Um dia desses.
Depois daquela noite.
Antes do aviso.
Quem sabe, agora?
Me beija devagar?
Me beija?
E deixa eu sentir o beijo,
abraço, sua pele.
Deixa eu roubar com os dedos
um pouco de você.
Pra poder ir.
Sem adeus.


Carlota

15122010

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Morto vivo

O caso já acabou há anos e você ainda suspira? E procura cartões antigos, relembra perfumes, arruma desculpas para o namoro ter acabado e se considera o grande amor da vida dele (apenas ele não se deu conta disso)? Pois é, carregando um morto vivo por aí e nem sabe. Ou vai me dizer que acha normal seguir o perfil dele no facebook, olhar as fotos, vez em quando engatar um papo via email (para relembrar as vezes em que eles foram pródigos e calientes) e ter uma resposta lacônica?

Querida, a fila anda e a catraca gira. Em frente, certinho? Nada de se agarrar com aquela seleção musical que te lembra dançar com ele, nada de olhar a lua cheia e pensar naquela noite em Japaratinga, nada de ir na Livraria Cultura catar o livro de um autor que, você sabe, ele adora.

Medida profilática um é deletar o número dele da sua agenda do celular. A dois é, ai, deus lhe dê forças, apagar os emails dele da sua caixa postal, incluindo aí também as mensagens românticas ou sacaninhas que ainda habitam o seu telefone. Doeu, pois é, mas é preciso ir adelante, cariño, se não, corre o risco de virar uma moçoila suspirante e aflita, com rancores e rompantes inimigos de qualquer cara que queira se aproximar de você.

Então que estamos decididas. Felizes. Recomeçando. Do curso de idiomas a uma aula de sapateado. E vai que quando você decide ficar em casa, naquela sexta à noite, a assombração te liga perguntando onde você está. Assim, na maior tranqüilidade, pra não dizer cara de pau. E você fora de si porque resolveu ficar em casa e ela fica a quilômetros de qualquer oportunidade de reencontro. Nem pense em sair, viu? Melhor brincar que vai dormir.

Tá. Combinado. Eis que o céu conspira e te traz um outro telefonema, em plena manhã de terça-feira. Um tchau tão definitivo – você pensa – devia mesmo era ter dito: fui! E uma conversa mansa, sem pé nem cabeça, com certeza não envolvia álcool que eram apenas 9h30. A surpresa só não é maior porque você conseguiu ser articulada o suficiente pra dizer: meu bem, já era.

E você, que está levinha, comprou duas saias vaporosas e cinco camisetas para curtir o verão, planeja a viagem do próximo ano e quer romper o ano sozinha e de branco em uma praia linda (ainda bem que parcelam pacotes de réveillon), só consegue pensar que dezembro, definitivamente, é o mês do malassombro. Portanto, querida, se benza, espante os morto vivos e os nem tanto e caia na farra com sua solteirice. E nem precisa ter lido Simone de Beauvoir pra saber que essa liberdade às vezes é solitária, mas garante algo compensador: a verdade de estar com quem você quer, apenas quando você quiser.

Carlota
08122010

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Como quando a gente volta (ou se encontra)

Caixas se espalhavam por todos os lados. Porta retratos, bichos de pelúcia, lindas xícaras prateadas, pantufas coloridas. Um computador, calculadora, canetas, três mulheres quase enlouquecidas com tanto a fazer. Eis que há uma pausa rósea, aliás, sorridente, rósea e gentil. Um amigo que decide fazer um brinde delicado, trazendo flores, abraços e braços para o trabalho que não findava naquela noite de quinta.

Em meio à confusão, ao esforço de iluminar as janelas fazendo com que o pisca-pisca de 15 metros desse pra tudo, deu oito da noite e era preciso correr. Mas a pressa foi bem vinda, porque abriu espaço para todos irem até o bar mais próximo, experimentar novamente beber juntos, numa barulhenta conversa entre quatro pessoas.

Da cerveja inicial a opção ficou para o clone de uísque. Todos bebemos e brindamos, brindamos e bebemos. Era dia 25, aniversário de um ano e, também, sabíamos apenas as três, de uma semana de uma briga intensa e um retomar cuidadoso, como se ainda fosse preciso reconhecer o terreno que sempre fora nosso.

Mas a pausa era conversa pra horas. E a comida demorava, o garçon se chamava Max (Groucho Max, será?) porque simpático e amistoso e todos com fome até que a carne veio e nos fizemos carne também. Vivos, presentes, alegres. Naquele papo que diz muito e quase não diz nada, surge o convite para um café. Aliás, para um licor, café foi sugestão para acompanhar. E, porque não dizer, diminuir o teor alcoólico do meu sangue, que já beirava o limite do aceitável, face ao cansaço de quem ainda queria encadernar oito blocos (projeto que se revelou impossível ao chegar em casa a uma da manhã).

Eu me instalo na cozinha, para mim o espaço mais interessante de uma casa, quando preciso me ambientar sem me intrometer demais no espaço alheio. Vou lá, pra moka, explicando ser necessário colocar apenas 2/3 de água, o café no filtro sem apertar, indo para a sala apenas durante o licor (ou antes corremos o apartamento, as três? Não lembro). Amarula é maravilhoso com café. Puro também. Mas o melhor da noite foi ser surpreendida com tanta gentileza.

O perfume do café invadiu a sala. Achei que podia ter ficado mais forte, mas todo mundo curtiu. Eu estava curtindo estar ali. Sem preocupações com uma festa iminente, com uma dia em que teria no mínimo 12 horas consecutivas de trabalho, com voltar para casa. Acho que só senti falta de música, que ando procurando-a por onde vou. Mas não foi uma falta percebida no momento. Só agora, lembrando, lembrei disso.

Diferenças entre críquete e pólo. Entre alazões, baios e outros dos quais me esqueci o nome. Observar uma negrita muy bella, que parece um convite à liberdade e ao vento no rosto. Encerrar a noite com um abraço curto e gostoso. Estávamos todos um pouco altos. E muito, muito alegres. Entreguei-me à minha cama e nem pensei na ressaca que poderia surgir. O aniversário fora pleno. E feliz.
Carlota. 29112010

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Apenas

Não vou pedir desculpas.
Não adiantariam.
Sinto-me estranha, apenas.
Como se uma amiga tivesse razão
E houvesse duas de mim.
O adeus que eu dei doeu.
Mais uma vez.
E me provoca
Por ter sido escolha.
Sinto-me estranha apenas.
Estrangeira no meu corpo
Em minha casa
Entre os meus.
De novo esse afastamento.
De novo um coração ressentido.
Mesmo ele, de perdão.
Sinto-me estranha, apenas.
E a sensação é de perda.
Como se alguém precisasse dizer:
seja gentil.
Então essas lágrimas não se vestem
Elas me despem, desnudam
Mas o que fica é conhecido demais.
Não precisava ser.
Sinto-me estranha, apenas.
Mesmo sem querer.


Carlota.
21112010

domingo, 24 de outubro de 2010

Nuvens

Coisinhas bobas de domingo. Escolher esmaltes com a filha no supermercado. Terminei trazendo três, um preto para ela (vai ter Hallowen na escola) e um verde água e outro vermelho para mim. Experimentei-os assim que cheguei em casa e cá estou digitando com três dedos da mão esquerda pintados. Eles foram unânimes: preferem o verde água ao vermelho – acho que não querem ver a mãe pintada de paixão.

Um pouquinho antes do jantar, me deixo ficar no jardim da minha casa. Finalmente hoje tive coragem de podar umas plantas que ameaçavam invadir até os muros vizinhos e cresciam totalmente desorientadas. Aproveitei as cadeiras de praia que ganhei de presente e resolvi dar uma parada para escutar música, tomar uma cerveja e olhar o céu. Fiquei sentindo a brisa e lembrando de chamar minhas amigas para curtir um céu desses num sábado próximo, ouvindo música e tomando cerveja, sem necessidade de falar.

Marina inventou de ficar ao meu lado um pouquinho, mas ela queria falar, falar, falar. Tentei dividir o fone de ouvido, mas não houve acordo. Então despachei-a pra dentro, depois de tirar umas fotos lindas. Estava eu admirada da beleza dessa menina, com seus cabelos longos e cacheados e esse riso franco de quem sabe que está atrapalhando meus devaneios mas vai dar uma colher de chá durante um tempinho. Ian também apareceu, deu sorrisos, ganhou um registro a mais no celular.

Até que Igor resolveu chegar e nossa semelhança também. Que ficamos os dois olhando o céu, dividindo o fone de ouvido, admirando e imaginando formas para as nuvens que passavam devagarinho. Falei daquela estrela que tinha um brilho fixo, não é estrela, é planeta, Vênus, vésper, a estrela da manhã e da tarde (a estrela Dalva dos poetas). Ele não sabia e eu fiquei contente em dividir algo que aprendi há tanto tempo.

Tocávamos com os pés um no outro, nesse encaixe de quem é cúmplice. E ser cúmplice dele nessa noite foi deixar de ser a mãe exigente que cobra o uso do aparelho, o estudo e o compromisso com ele mesmo. Tão bom só curtir a companhia desse menino de quase 12 anos. Que também gosta de ouvir música e olhar o céu, dividindo os nossos silêncios sem espanto. Partilhando a amizade. A lua resolveu sair nesse momento e aí a gente ficou assim, numa de dizer: putz, tá muito linda. Tá nascendo. Vamos tentar tirar uma foto. Dá um zoom, mãe, dá um zoom! E a gente subiu no portão, no muro e ficou lá, tirando foto e olhando ela subindo no céu.

Depois que ele entrou ainda fiquei um pouco lá fora, tentei ligar pra matar uma amiga de inveja, mas nada de atender. Descalça e naquela cadeira de praia, curtindo ouvir música sozinha, lembrando do que senti no supermercado. Tremendo mau humor antes do almoço, mas quando fomos às compras eles se sentiram em um parque de diversões. (coisa de criança que não paga as contas e escolhe besteirinhas pra comer depois).

Em plena escolha das laranjas, peço que cada um vá pegar algo e eles foram tão decididos, tão contentes com a divisão de responsabilidades, que apenas fiquei parada sentindo uma conhecida onda de amor. Um lance de adorar ter essas crianças comigo. De curtir ensiná-los a serem independentes, a colaborar e contribuir um com o outro no que for preciso. Se bem que às vezes isso não funciona de jeito nenhum. Brigam, gritam, irritam-se. Mas estavam minhas crianças amenas.

Ainda tenho de enfrentar a tintura. Ainda tenho de colocar cada um para dormir. Os pratos do jantar estão chamando, mas acho que vou deixar essa parte para amanhã. Sim, tenho de tirar esse esmalte, vai ficar estranho chegar no trabalho amanhã com três unhas pintadas. Eles me chamam pra assistir TV, enquanto escorrego um pouco e venho pra cá, escrever. Registrando um dia bom.

Carlota
24102010

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Neve

Daquelas vezes em que eu nem te tocava direito e já ia ao infinito, tortuosa forma de amar essa minha que te queria sem precisão, mas precisando muito e tudo e mais de uma vez. Daquele tempo em que a gente podia se encontrar tranquilamente porque nada havia que a gente não soubesse, tudo era aberto e não havia esse querer. E a gente era tranqüilo e não se evitava onde quer que a gente fosse.

De todas as formas em que encontrar era um modo de fugir da solidão e de amar sem ser amado, sem afeto, só essa fome e no final o desespero era não querer mostrar que a pele já dizia de um jeito de querer diferente para além da fala que não se fazia presente ali.

Aquele pegar nos meus cabelos e arrancar os fios, segurar sua nuca e murmurar juntinho, aquelas pernas entrelaçadas e beijos úmidos, não havia ninguém, ou havia porque a janela sempre ficou aberta, a porta e os nossos olhos.

Sem explicação que não precisava disso. Precisava era do teu beijo desse jeito sem perdão. Porque eu ia ao seu encontro sem culpa e ainda dele saía com a alma lavada, as roupas amassadas pelo chão. E nem que me digam o contrário e já disseram eu vou deixar de pensar que esse toque quase meu me dizia do desejo de ter, uma posse idiota e infinita, porque nada tinha de seu.

E o meu nesse caso é partida todo tempo, é calar e separar e ir embora sem vontade porque ficaria mais um pouco mas me arrumo antes que alguém faça o convite e me desligo do que eu poderia ser porque não quero pensar, bastava sentir desse jeito de quem não aprendeu direito e se apega porque ainda não sabe esperar.

E a espera podia ser um pouco de tudo, podia ser de dois anos ou 15 dias ninguém sabia direito e porque não deixar isso passar e ser apenas isso tranqüilo sem evitar um ao outro além daquele espaço de tempo curto em que um era para o outro e só. Mas nada havia a fazer além de saber do que a gente não tinha em comum para além daquele tempo em que a vontade era uma e de nós dois.

Carlota
09092010

domingo, 22 de agosto de 2010

Um jardim

Havia entre nós, eu e meu filho caçula, uma pequena disputa, deliciosa e cúmplice porque de nós dois apenas. Era um afagar mútuo, no qual cada um dizia do amor em si feito em palavras quase repetidas: meu biscoitinho/ minha biscoitinha/ meu anjinho/ minha anjinha/ meu querido/ minha querida...

E nos enredávamos nessa conversinha mansa, tão suave e agradável, porque vinda de um menino cacheadinho e de olhos doces. Um dia, nesse tempo, ele ganhou a disputa. Falávamos de flores, folhas, nos dávamos nomes de árvores, até que ele me encarou e disse: meu jardim! E ali declarei-me rendida: você ganhou!

Na percepção que escolhi ter na vida, o jardim é a melhor parte de nós. Aquela parte da alma que não deixamos secar. Onde cultivamos uma terra inteira de afetos, que crescem perenes, mesmo quando se vão. Não foi à toa que escolhi comprar uma casa e, ao encarar o jardim tomado por brita, pedi aos meus amigos, como presente de casa nova, não uma cuscuzeira ou toalha de pratos. Pedi uma muda de alguma planta, para que os tivesse perto de mim.

Uma tarde toda levei plantando hixórias, pingos de ouro, buchinho, um flamboyant (depois transplantado para a casa de um colega de trabalho em Itamaracá). Sim, e jasmins, porque eles serenam minha mente cansada, quando deles sinto o cheiro pela janela. E porque tenho deles a lembrança de infância na casa de minha avó paterna (Não que tivéssemos muito contato e nem que esses fossem sempre agradáveis. Mas sua casa, a entrada perfumada de jasmins, me abrandava).`

Quando na universidade, tínhamos nesta um jardim com um lindo gramado. Dos que convidavam a tardes lânguidas, seguidas de conversas intermináveis sobre sonhos e o dia a dia das aulas. Era com tristeza que víamos o espaço encerrado em si mesmo, rodeado por grades que nada diziam, ou melhor, falavam dessa vida presa. Eu preferia então ir à entrada da biblioteca observar os peixes, sentindo uma espécie de cansaço nesses intervalos.

Voltei a essa mesma universidade para ensinar. Meus mestres tornaram-se amigos. Outras pessoas, que não conhecia, chegaram pertinho e foram ganhando espaço nos meus dias. Quase dez anos depois, o jardim perdeu as grades, ganhou vida, tornou-se espaço para abraços, reflexões, trabalho. Para a pausa que precisamos quando ainda não é tempo de voltar para casa. Convida-nos com seus pequenos animais livres, seus bancos e sombras, a jogar conversa fora, a abrir os olhos para as folhas de uma árvore, para um rapaz tocando violão, ou aquele grupo discutindo, quem sabe, filosofia?

Um aluno um dia me disse: a universidade nos empurra para casa, nada nos convida a estar aqui após as aulas (ainda vivíamos com grades, infelizmente). Lembro dele quando vejo este jardim. Porque há um sentido de permanência, de convivência, hoje, nesse lugar. O extenso gramado ganhou lajotas a indicar caminhos ladeados por arbustos. A vida dos que passam por aqui parece estar um pouco mais leve, talvez arejada por ganhar esse espaço. Que ele seja, e não apenas ele, uma parte do que temos de melhor. Este jardim.

Carlota
22082010

sábado, 3 de julho de 2010

Tatuagem

Prometi a uma mulher de olhos verdes que ela ganharia uma tatuagem de aniversário, pelos seus anos iguais aos meus. Estou praticamente enfrentando a dor e investindo em uma também. Mas ela, que não tem coragem de deletar meus emails, merece mais do que uma tatuagem. Porque a vida é árida por vezes e é preciso falar de amor, de afeto, de amizade.

Dona Ana Maria é uma baixinha invocada. Mas que entende meus rompantes, tanto os que me deixam no brilho quanto os que me provocam ataques de fúria. Sabe um pouco de mim, porque a amizade começou antes de nos tornarmos sócias. Não nego, me apaixonei primeiro por seu filho, encantador e gentil, capaz de escolher opções para jantarmos em conjunto, driblando minha alergia a frutos do mar.

Gosta tanto de música, essa menina. De tantas que eu também curto. De se sentir livre, por isso ser tão rápida no volante. Até ouvir minha medrosa ameaça, faz isso não, que eu tenho medo. E ela, gentilmente, reduz um pouco a velocidade, contendo essa fome de vida que eu também trago comigo, mas que vou transformando em textos, dança e caminhadas.

Acho que aniversários devem ser feitos para comemorar. Pra festejar com alegria, por mais idade que a gente vá acumulando, por mais cabelos brancos que surjam (e que são implacavelmente pintados de castanho), por mais que a vida nos ofereça embates doídos demais. Vibrar com pequenas coisas, com as conquistas, com a beleza de um dia que amanheceu bonito, a lua que nos faz querer namorar, um telefonema que traduz praticamente o quanto somos queridas, por tão inesperado ou aguardado. Isso é viver. Sabendo sonhar, esperar, colher as sementes que plantamos todos os dias.

Para não ficar parecendo texto de auto-ajuda, vou dizer outras coisas. Dizer que estou por perto quando precisar. Que minha casa também é sua, aceito dividir até o caçula, que você ainda não conseguiu conquistar (porque ele é quase inteiramente meu). Dizer que sempre vou estar por perto para arrumar vitrines e confusão. Para beber em uma sexta-feira ou acordar cedinho em um domingo. Para curtir a praia, seus amigos, dançar.

Aninha, você é especial por vários motivos. Mas o primeiro deles, para mim, é a proximidade sem frescura de quem está por perto e conhece meus defeitos. E me aceita. Porque é capaz de se encantar com coisinhas bestas que falo ou escrevo. Porque tem no sangue a vibe de uma mulher que sabe que é isso, mulher, toda cheia de conflitos e felicidade, toda alegria e tristeza, toda beleza, vaidade, querer.

Para minha Ana Maria, vale sempre dizer: você é uma pessoa querida. E que sabe estar no lugar certo quando a gente precisa. Mesmo que dormindo ou com cara de cansaço, ou dizendo, tem que fazer, tem que ter isso ou aquilo, fulano merece, tão preocupada com todo mundo. Pudesse eu hoje, abriria uma casa de festas pra gente ser criança de novo. Pra brincar de cama elástica, pula-pula, comer pipoca e brigadeiro, tomar uísque e guaraná (sem mistura, para não estragar).

Lembre: estou aqui. Ao seu lado. Como uma tatoo. Enquanto a vida me mantiver em Recife, enquanto a inquietude não me levar a outras paragens. Beijo, minha querida, feliz aniversário.

Carlota
03072010.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Amigas

Marina, fuçando comigo meu blog (apresentei-o a ela, explicando que a gente publica textos, fotos etc - ninoca está querendo um agora), viu minhas tags. A de amigas. E aí que ela criou uma frase para a amizade:
"Amigas são para o sempre, não para o nunca". Marina Teixeira, 10 anos neste 30 de junho de 2010.
A felicidade não tem segredos nem receitas (e não é perfeita).

Carlota
24062010
Às vezes as coisas parecem o que são.

Carlota
24062010

domingo, 27 de junho de 2010

Fábula da gentileza

Sofria. Não de indecisão, medo, insônia. Era daquela ânsia de ser gentil, até mesmo quando sibililava as palavras entre os dentes, sentindo-as uma a uma sobre a língua, como fossem se misturar e formar outras frases. Estas, as frases, não seriam suas, mas de um outro, revelado ríspido.

Educado em bons colégios, a gentileza não fora fruto desses aprendizados. Parecia intríseca a sua personalidade, que conquistava seguidores, aliados, companheiros em um ambiente para muitos doloroso. Professores, amigos, mulheres, funcionários das escolas e até mesmo o jardineiro mal humorado que praticamente afogava as plantas quando não havia ninguém olhando, até com ele haveria de ser gentil, menino de olhos claros e tez suave.

Crescendo, desenvolvera ainda mais o seu dom, tornando-se irresistível. Havia, certamente, algo escondido. Um ponto ameaçando a paz de sua sincera gentileza. É preciso dizê-lo, não era falso nem ardiloso. Por vezes o ponto escuro doía, pelo desconhecimento que tinha dele. Como se fosse um apêndice e não algo necessário, como a chuva, a morte, um beijo.

Não resistiu por muito tempo ao chamado da escuridão. Formou as frases inversas e soltou-as não por entre os dentes, mas aos gritos. Passou por louco, apaixonado, por devasso, incoerente. Causou espanto e, no fundo, alívio entre os que lhe conheciam.

A mulher que vivera observando-o de longe sorriu. Finalmente, após tantos anos, seria cúmplice. Toda aquela gentileza lhe parecera um vício. No qual ela também estivera presa por tempo demais. O olhar entre os dois era agora de reconhecimento. Dois seres irmãos nos olhos gentis e gestos impossíveis.

Carlota
25062010

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Guerreira, não. Só mulher.

Engraçado duas mulheres terem dito isso de mim. Que eu sou uma guerreira. Como se fosse uma luta a vida que eu levo. Não é. É cheia de afeto. Acho que a vontade de correr para um lado e outro, de enfrentar a rotina sem medo, de criar meus filhos de peito aberto, porque eles sabem que também sofro e tenho dúvidas, não é luta. É apenas a vida que escolhi viver.

As escolhas poderiam ter sido outras. Em algumas ocasiões foram. Por vezes me dá vontade de apenas sair por aí, sem compromisso, sem pressão, sem destino. Me dá alegria saber que em alguns momentos poderei fazer isso. Porque minha mente viaja, porque tenho esperança ou porque eu sonho.

Não há guerra. Há conflitos. Não há luta. Há meus dias. Há coisas ruins, sem dúvida. Solidão seria uma, se eu não tivesse por perto amigos tão queridos. Todos. Os abusados, os calados, os em dúvida. Os atrevidos, os inquietos. Sim. Talvez seja isso. Inquietude.

Isso eu sinto e sei que sou. Parece que algo sempre está prestes a acontecer. Parece que posso perder o bonde, o trem, o avião. Parece que, se eu deixar, o tempo vai passar por mim e eu não estarei com a janela aberta.

Guerreira pra mim é a cobradora do ônibus, a catadora de papel, a mulher de sandália rasteira que vai buscar o bolsa-família carregando os filhos, a mãe de uma criança doente, a minha empregada. Ela sim, e mesmo assim dona de um sorriso tão bonito e de um olhar generoso para com meus filhos.

Não me considerem, nem hoje nem amanhã, uma guerreira. Seria valorizar demais a rotina de uma mulher que sustenta casa, família, trabalha, e encontra tempo para amar, divertir-se, encontrar amigos onde eles estão. Não há guerra. Meus fantasmas se afastaram há muito. Continuo a viver. Estou impregnada de vontades e paisagens escondidas. E com a alma plena.


Carlota

16062010.

domingo, 13 de junho de 2010

Chuva

Chuva num dia de Santo Antônio pós dia dos namorados em que eu tive de ir a uma festa infantil (e graças a Deus uma mãe teve pena de mim e me chamou pra conversar) é dose. Só queria dormir, curtir meu edredon, comer bolo do aniversário da comadre, que a ressaca foi dureza. Desde quinta a gente comemora - cada uma aos trancos e barrancos - pois o mês de junho está sendo pauleira de tanto trabalho.

Tenho andado aérea. Mas o forró estava ótimo. Aliás, ter saído na quinta, organizado uma festa, produzido cartões para outros namorados, dançado dois dias seguidos contribuiu para manter a mente longe do que eu não quero nem pensar. Porque mulher é um bicho que gosta de complicar. E de ficar nessas de refletir.

Parei para me perguntar o porquê das coisas. Adianta não. Não tenho nenhuma resposta convincente. Só sei que está chovendo né? E quem sai nesse tempo ou se molha e pega um resfriado, ou curte o frio e esses beijos gelados que chegam com o vento.

Apois, tenho o que dizer mais não. Só que seria bom alguém conversar bem muito comigo para me distrair. Tipo assim, horas a fio. Até eu dormir.

Carlota
130610

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Uma canção de amor

Pra você, Marguinha, meu feliz aniversário

Beijo, flor


Já escrevi pequenos cantos de ano novo. Hoje vou relembrar uma canção de amor que trago no peito. Que apesar de tudo ou talvez por isso mesmo, me faça ser tão vibrante e apaixonada por viver. Mas não viver uma vida meia boca, uma coisa assim sem graça, um jeito de quem quase não anda a pé. Mas uma vida de quem se irrita e estremece e enternece com aquele olhar quase sem chão de quem tem pouco ou nada tem.

A canção de amor fala de amizade. De uma, que nasceu tão longe, mas que é minha, pela perfeição. Esteve em momentos cruciantes, imprescindível presença a dizer-me isso passa. A dizer que apesar do meu ano que era mais um, sim, sou mais velha, eu era ainda tão imatura nesse jogo que é viver a vida.

Ela a salvou quando quase morri. E a cicatriz que trago assim, na lateral do abdomen, só me lembra que estou aqui. E que durante 10 dias ela me carregou ao hospital acreditando piamente que minhas dores existiam, não eram fruto de imaginação nem de problemas, que naquele ano tão pesado não faltaram.

Nós, quase siamesas no pensamento, confundíamos o porteiro do terapeuta que tínhamos em comum. Mesmo sem nunca termos ido lá juntas, aquele cara na portaria me chamava por seu nome. Até que ouvi, ao reclamar disso: vocês parecem irmãs. Eu disse: mas ela é branca, eu sou tão negona...

Somos irmãs de alma. Daquelas que nascem procurando pela outra. Daquelas que sabem que encerram em seu peito mais do que segredos ou sofrimento. Encerram no peito alegria por terem participado de momentos importantes: o primeiro filho, a defesa do mestrado, a separação dolorida, o crescimento dos meninos.

Essa menina tão querida, que se chama Margarette, escolhi como sócia, como amiga, como pessoa que é, surpreendente. E descobri, eu que me achava tão minúscula perto do poder que ela exibia na vida, com os homens, com a família e as finanças, que podia também ensinar. Porque nesse percurso aprendi a perdoar, a amar, a vibrar, a querer e mostrar meus quereres a quem me interessar. Aprendi a ser cáustica quando necessário e até a brigar com minha amiga querida, a questionar suas frases, suas ações, seus elaborados pensamentos.

Aprendi que também posso lhe ensinar que a vida é pra gente viver. E quebrar a cara e se arrepender. E que mesmo esse arrependimento pode ser aprendizado. Porque a gente se inspira para outras coisas, se prepara para novas histórias, se mostra mais verdadeira, porque falhou ou porque aprendeu, finalmente, que não é preciso ser perfeita.

Ensinei, acredito, que não tenho culpas. Não vou me arrepender das vezes em que fui com amigos beber cerveja e deixei os filhos dormindo em casa. Não vou me arrepender de algum projeto que ficou pela metade, nem dos momentos em que tive de emendar um trabalho no outro até sentir dor e não conseguir mais fazer um cartaz que fosse.

Queria mesmo era dizer o quanto lhe sou grata. Porque se ela não abrisse meus olhos para o que eu sou, falando da vida que carrego, como Carlos, que eu amo, eu teria esquecido desse sentir. De como curto andar, dançar, parir. O quanto sou família e o quanto sou mulher. O quanto quero sempre descobrir e aprender.

Em julho tem curso de ilustração, tem espanhol. Talvez viagem no próximo ano. Encontrar outros amigos, outros mundos, outras coisas que sosseguem um coração desarvorado pela vontade que sinto de viver entre os meus. E de ser e estar e sentir-me sempre viva. Apesar dos problemas, apesar das coisas que deixei pendentes, apesar de. Porque é preciso ir. Sempre.

Hoje, 11 de junho de 2010, saúdo minha amiga que finalmente completou 40 anos. Sabendo o peso e a importância dessa idade. Sabendo do quanto somos efêmeros. E de como é preciso viver.

Hoje, 11 de junho, digo: te amo para sempre, minha querida.
Carlota
11062010.

sábado, 5 de junho de 2010

A cerimônia do adeus

Roubo de Simone de Beauvoir o título dessa crônica, ela que escreveu esse livro em uma homenagem a Sartre. Quem não leu Tete a Tete, procure-o na livraria para conhecer mais desse casal revolucionário, e dos códigos de conduta temporários de Sartre. Mas não é este o motivo da crônica. O motivo é o adeus de uma amiga (o meu, dei anos atrás); Por sinal, ela começa assim:

Hoje eu tenho de te dizer adeus. Pra quê? Já não fora dito? Já não tinha sido uma escolha? Os caminhos não tinham se separado antes de hoje à tarde?

Sim, mas eu sempre senti que podia. Voltar, me aninhar em seus braços, deixar cair os muros que levantei tão sem sentir. Ou melhor, após sentir tanta dor.

Não é hoje que você vai embora. Você vai há muito tempo. E a coragem de libertar minhas amarras você também deixou para trás. Porque houve tantos não ditos, tantas palavras que mesmo ditas não surtiram efeito, porque todas as mágoas, rancores, angústias, demoraram a passar.

Tinha de ser em pleno inferno astral? Não, não tinha. Mas tinha de ser em algum momento. Porque talvez o que ainda está perto possa ser menos doído à distância. Talvez o que fique longe alivie nossa alma e finalmente a liberte.

Mas esse adeus não pode ser sem um último beijo, sem esse abraço sufocante de não querer ir e nem deixar partir. Não pode ser sem eu me entregar mais uma vez, porque desespero com esse ir, que me diz: não vou voltar. Deixa eu te amar. Deixa. Desse jeito morno, desse jeito de quem conhece teu corpo, para quem o meu se entrega docemente, não, hoje ele é quase feroz, de tanta vontade de você de tanto tempo de tanta falta de tanta lembrança que chegou e não foi.

Há quanto tempo minha história é você? Há quanto decidi que você foi meu grande amor? Como não lhe ver nunca mais ou lhe ver em períodos determinados pelo voltar um dia ou nunca?

Ai que essa dor vai doer muito. Que esse dia não chegue hoje. Que ele sempre seja só amanhã. Que a noite se prolongue e meu choro se misture com meu gozo e queria gozar mil vezes e te beijar milhões e te encontrar sempre meu, sem reservas hoje, sem vontade de ganhar disputas verbais ou dizer que eu estava certa.

Sim, eu estava certa. E ainda estou. Certa de que você é meu grande amor. E que esse coração vai precisar de outra pausa, até chegar o tempo de renascer.

Hoje, meu amor, te digo adeus. Não volte, não me olhe, não me esqueça.


Carlota
04062010

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Quase isso

Sentiu vontade de ouvir segredos. Daqueles, descritos nos olhos, repletos de silêncios. Havia uma caixa aqui. Estava fechada e de repente escorregou. Exposta assim sua forma, parecia simples, artefato de madeira que não encaixava mais direito e, por isso, permanecia aberto.

Esforço. Tentativa. Nada. Continuava lá, aberta. Incerta. Poderia reunir poemas, fotos antigas, ter guardado uma minúscula mecha de cabelo ou o crucifixo da família. Pequena. Nada tinha disso. Leve. Quase pluma.

Como etérea fosse, permitiu correr. Vento no rosto amenizava a canseira do dia. Passos cada vez mais rápidos impediam o pensamento traiçoeiro. Ainda não. O lugar não é esse. Continua a correr. Está mais longe.

Sem fôlego. Respirar era difícil. Abre o peito e sente o ar entrar. Devagar agora. Baixa o ritmo de vez, tonta do esforço. Os pés doem, as mãos formigam. Vertigem. Libertadora. Não precisava ser firme nem ater-se ao gesto.

Delicada vontade de ouvir segredos. Manhã de caixa e peito abertos. Por um triz.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Domingo de mãe

Acho que cada mãe já teve um insight sobre isso. Não naquele estilo comercial da Avon (locomotiva de amor), tampouco daquele da Renner (horrível, para as que são mães e para as que continuam sonhando). Mãe sabe o quanto é difícil ser. O quanto tem dias de não sabermos ao certo nem quem somos e nos quais a responsabilidade de ter aqueles olhos cheios de confiança nos olhando pesa, porque não queremos decepcionar e nem que o filho sofra uma.

Meu dia das mães começou com crianças me falando de sua fome (e com beijos, beijoqueiros esses meninos!). O almoço foi festivo, com tia e prima-sobrinha-afilhada temperando a tarde com suas companhias, assim como a de minha irmã. Presente ainda o marido da tia, que terminou roubando de mim sua presença pouco depois de nos empanturrarmos de afeto.

Assisti a um filme, subi para tirar um cochilo. Mas antes disso, na despedida, lembrei de minha avó, a matriarca da família Pacheco. A que nos reunia em torno dela em datas especiais, com uma culinária de anos passados junto ao fogão, com prazer. Ainda não comi feijão nem peixada de coco mais gostosos. Mesmo imitando-a na arte de fazer fatia parida, não chego aos pés no sabor. Talvez porque eu use leite de coco de caixinha, ao invés de raspar o fruto por horas...

Quando criança dizia que ela era meu travesseirinho (barrigudinha, minha avó). Calada, olhos profundos, dizia tão pouco de si. Mas sabia tanto e sempre. Senti sua falta nesse domingo. Falta do seu apetite na mesa, daquele estar prolongado, em que a gente nem mais conversa, mas convive e partilha o sentimento simplesmente por estar perto.

Dela herdei o gosto de receber amigos, mesmo que isso seja raro, por parar pouco em casa. O receber, o dar, o doar o que sei, termino levando comigo para onde vou. Na casa da comadre faço bolos, crepes, lavo os pratos. Ou só converso junto a um balcão, arrastando um banco, cadeira, o que estiver mais perto.

Dos presentes recebidos, alguns foram inesperados. Ian inventando música enquanto tomava banho, finalzinho de noite, rimando, aquele menino cacheado. Marina me dando aqueles mil pequenos beijos e perdoando do jeitinho dela meu atraso na festinha da escola. Igor me dizendo: você é legal assim, apertando o meu pescoço num abraço, durante o qual repetiu: mãe, você é muito legal!

Presentes são eles, por fazerem parte. Por saberem de minhas dúvidas, temores, angústias. Por conhecerem meu humor, minha paciência, minha quase demência quando estou alegre. Por saberem que podemos contar uns com os outros, companheiros de vida e de afeto, de felicidade e de poesia, porque eles - assim como eu - inventam músicas, versos, desenham - expressam de mil formas diferentes o que pensam, o que sonham, o que às vezes nem conseguimos dizer direito.

O domingo foi de sol. A tarde, após o cochilo, foi encerrada com um breve passeio de bicicleta ao lado de meu filho mais velho. Que pediu, chegados à nossa rua, vamos lado a lado? Vamos filho. Lado a lado. Feliz por estar aqui.

Carlota
11052010

segunda-feira, 19 de abril de 2010

De como as palavras geram mal-entendidos

Terça-feira o despertador me assustou. Pensei ser 10 da manhã, quando na verdade eram 7h40. Aproveitei e, antes do trabalho, fui caminhar na praia. Melhoro meu tempo a cada dia, porque faço o mesmo percurso de antes e ainda dou uma parada para olhar o mar, chegando em casa exatamente uma hora depois de ter saído.

Haviam tarefas me esperando. Por vezes não sei por qual delas começar. A opção, algumas vezes, é o mais urgente. Mas como as urgências estão cada vez mais frequentes, tenho dias de ansiedade. Mas na terça, não. Tinha tranquilidade por saber ter tempo para criar. Canetas, caderno, lápis de desenho, revistas, uma infinita pesquisa por fontes e referências legais.

O lance foi uma frase. Justo para quem trabalha com elas. Cada um entendeu de um jeito e se armou como pode. Ergueu muros de defesa ou de irritação. No desespero, fiquei sem rumo. E como a adivinhar o desamparo, liga um ex-vizinho falando da saudade, da convivência, do querer que eu conhecesse a casa nova. E ainda diz que me ama no final da ligação, coisa boa de ouvir assim, de surpresa, ainda início de tarde.

Minha avó me orientava a não falar certas palavras em casa, uma espécie de superstição sobre a força de cada uma delas. Hoje prefiro que meus filhos também não digam algumas, a herança é maior que a racionalidade. Uma frase pode provocar reações inesperadas. Lembro das que escrevi para algumas pessoas. Mesmo depois de meses, eram capazes de repeti-las, numa espécie de acusação ou de deslumbre, dependendo da dor ou do afeto.

Algumas eu disse mesmo. E me arrependi. Algumas histórias contei não sei pra quê. Mania de ser sincera demais, expor demais o que nem sempre é preciso. Porque depois disso, não tem volta. Não tem borracha ou amnésia. Está lá.

Ao mesmo tempo, a escrita me ajudou na mesma semana em que falaram do meu auto controle. Para suavizar um percurso que provocava angústia, fui retomando coisas que me deixam feliz, repassando-as para alguém querido. Engraçado foi ter de repetir a lista para mim mesma quase como um mantra, até equilibrar de novo a mulher que eu sou.

Bem, o final do domingo me trouxe de volta. Amigo me visita para ouvir de mim. Elogios pelo jantar, perguntas sobre a vida, café relembrando antigos convívios. E antes que eu notasse, estava amena. Precisava daquela partilha, daquele café, daquela companhia. Precisava de alguém para quem eu me mostrasse sem reservas, pelo amplo tempo de amizade construída.

Chegou, enfim, a segunda. E a semana será minha.
Carlota
19042010

terça-feira, 6 de abril de 2010

Diz

Existe algo que não é dito, assim como há pessoas que, em algum momento, deixam de falar. E escondem, sublimam, anulam.
Tentei lembrar de quando começou o silêncio. Mais ou menos quando a gentileza foi posta de lado e o desejo assumiu a carne.
Estranhos que se tocam e silenciam, por não haver nada a dizer ou no temor de revelar algo profundo, sobre o qual é difícil contar.
Palavras sugestivas, estimulantes, provocadoras. Frases ditas ao ouvido, às escuras, ao som intermitente de um cd.
Uma espécie de dor essa, esconder-se da fragilidade, do querer coisas outras. Me surpreendo com esses silêncios, sem partilha, entrega. Mas houve dias de entrar no jogo e ficar e também de ter angústia.
Quando não é preciso dizer o encontro suprime a falta. Quando não há compaixão, o silêncio cala fundo.

Carlota 06042010

segunda-feira, 29 de março de 2010

Posse

É quando lhe assomam ímpetos assassinos ao surgir um nome na fala de alguém.

Aprendizados

Não consegui ainda aprender a conviver com outras mães num mesmo aniversário. A reunião de mais que cinco delas, sem contar a anfitriã, me deixa sem jeito. Se a timidez não me permite falar muito, algumas também não me inspiram grandes conversas. Talvez por eu nunca estar presente nas reuniões de pais e mestres, não ter inscrito meu filho no curso preparatório da primeira comunhão, vai me faltando assunto. Sorriso educado, mas parece que sempre um par de olhos vai me observar como quem não sabe quem sou eu e o que estou fazendo ali.

Melhor da festa foi fazer o caçula vencer o medo e entrar na piscina mesmo sem saber nadar. Uma saia leve, pelos joelhos, foi perfeita para ficar junto da água, que preocupada não descuidei no início desse menino enquanto se sentia inseguro. Fui me afastando aos poucos e aproveitei para curtir o sol, estendendo a saia entre as pernas para ela secar mais rápido. Longe das mães e próxima às crianças, creio que fiquei uma meia hora embaixo do sol. Tão bom, fazer nada assim.

Momento de me aproximar, para ninguém pensar que sou bicho do mato. Falo mais com a dona da casa, com a mãe de uma coleguinha do meu filho mais velho, simpática e agradável. Mas eis que aparece uma esquisita por lá, a falar baixo, a puxar a outra como a contar segredos, ui, isso me dá impaciência! E só tinha guaraná, que era festa de criança, nada mais justo (mas se tivesse um pai na área, garanto que tinha saído uma cerveja, tenho certeza).

Após quase seis horas de comemorações, fomos pra casa, curtindo a leveza de encontrar, quase no final da festa, uma amiga querida. Dessas mães que também se sentem isoladas no meio das muito certinhas e envolvidas em seu próprio grupo de conhecidas. Escuto-a dizer que se soubesse da minha presença teria ficado. Mas como cheguei tarde (mais de uma hora de atraso), ela terminou indo embora, deixando o filho curtindo a festa.

Criança tem de ser criança, dizia. De brincar e ainda cantar com quem será no finalzinho do parabéns. De ficar feliz com sacolinha e ovo de páscoa, de curtir os brigadeiros, os refris e o dia inteiro de piscina entre os amigos. Olhando assim, mesmo deslocada em alguns momentos, pude sentir uma alegria por ter partilhado com eles, por ter vencido o que seria preguiça ou cansaço, para apenas me permitir ser mãe nesse domingo. Uma mãe feliz.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Passionnément

Recebo hoje o email de uma amiga. Ela declara, em uma alegre e despretensiosa constatação: preciso me apaixonar novamente.
Eita que dia desses estava pensando a mesma coisa. E como tem dia que a gente pensa nisso, né?
Pensa num abraço.
Pensa num corpo amigo e companheiro.
Pensa naquele dia em que aquele amor começou.

Sábado, em casa com meus filhos, bateu essa vontade. E fiquei tão feliz por ter essas crianças, sabendo que nunca, nunca, esse amor vai acabar.
E mesmo assim sabendo, que sou sabida, que ninguém, nem filho, pode substituir a necessidade que sentimos de nos apaixonar de novo.
Porque, assim como nós, eles também vão crescer, vão se apaixonar, vão viver histórias, perto ou longe, e não nos é dado o direito de impedir, até porque seria horrível.
Respondi à minha amiga, com toda a certeza do mundo: não há nada mais libertador do que ser capaz de amar. Do que se apaixonar querendo muito ser feliz, mas sem medo de quebrar a cara, porque essa a gente remenda, mas e a alma quando se apaga?
Numa das vezes me descobri apaixonada antes da festa de aniversário do meu filho mais velho. Ah, fazia tanto tempo, ou pouco, sei lá contar isso. Constatei que estava apaixonada enquanto enrolava brigadeiros! E assim que fiz a maravilhosa descoberta, passei uma mensagem para uma amiga de sempre: acho que me apaixonei. e ser capaz de sentir me libertou.
Pois é. A vida liberta.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Tempo de luto

Deveria chorar sobre o corpo, mas havia gente demais ao seu redor. Perguntas e excesso de palavras, semelhantes a um enxame de pequenos mosquitos que incomodassem seu rosto, fazendo-a piscar repetidamente. Suspirou. Olhou novamente, acomodando suas mãos ao rosto dele, separando as flores, um último afago em seus cabelos.

Saiu da sala, deixando-o com sua família, amigos. Subiu as escadas sem tropeçar em nenhum degrau, tamanha a força com a qual segurava o corrimão. Num piscar de olhos lembrou da luz atravessando o vitral amarelo e a manhã sorridente em que fora ao seu encontro voando por ali, parando apenas nos seus braços. Um soluço. Não teria naquela casa um filho para lembrar-lhe dele. Remexeu-se agoniada, como a expulsar o sonho de si. Não queria pensar nisso agora. Devia refazer a vida, mudar-se da casa. Esquecer a dor. Não senti-la hoje. Não pensar nela amanhã. Mais tarde, mais forte, decidiria o que fazer.

Três anos após aquela tarde ainda não conseguira vencer o entorpecimento de tê-lo perdido. Acordava à noite procurando o seu braço. Negava a qualquer outro esse aconchego. Andando na sala olhou o vitral. A intensidade do amarelo provocava, agora, tontura. Foi quando uma pedra rompeu o vidro, despedaçando-o. Uma lasca quase atingiu seu rosto e a fez gritar de susto. O sol agora entrava sem filtros, invadindo de luz a sala. Espantada, tentou recolher os cacos, antes procurando ver quem havia atirado a pedra. Foi até a porta, saiu para o jardim, não havia ninguém.

Ficara encantada por aquela casa, o jardim e, sobretudo, pelo vitral antigo. Caiu em prantos. Relembrou detalhes de sua vida com Afonso e no quanto haviam sido felizes. As manhãs com café, as ligações durante o dia, chegada a noite, falar do trabalho e fazer planos. Chorou como uma criança, abraçada aos joelhos, balançando para frente e para trás. Não percebeu a manhã se esvaindo, os vidros espalhados. Só dizia: meu amor, meu amor.

Já escuro sentiu o coração vazio. Três anos e só hoje conseguira chorar a morte dele. Afonso, o que lhe arrancava gargalhadas inesperadas com frases que a desarmavam. Decidiu ter dele essas lembranças queridas e deixá-lo partir. Ficou quieta observando o próprio coração. Um bem-vindo cansaço a refrescava, como o vento frio que entrava por entre os vidros quebrados. Seu luto durara três anos de emoções represadas. E o corpo se ressentia dessa dureza de alma.

Não podia fazer voltar o tempo. Poderia viver de novo. Cuidadosamente, para não se cortar, tirou os restos do vitral. Comprou uma janela e deixou o sol entrar.

A vontade e a lâmina de barbear

A vontade era ficar à vontade na sua vontade de se barbear. Como se a barba, que ele achava atraente, fosse o símbolo de um momento que ele não queria ter. Como se assumir-se assim, com barba, fosse fazê-lo cativo da necessidade de estar. Então, estar com barba significava preocupação em mostrar-se do modo como mais gostava. Quanto mais fácil era conservar o símbolo, mais reticente ficava em mantê-lo. Não seria, se não o tivesse? Pois então o arrancaria dali.
O barulho da lâmina na pele, a forma como o rosto aparecia, o mecânico movimento de deslizá-la em si mesmo o fortalecia. No instante de distração, um pequeno corte e o vermelho próximo à boca. Cuidado no revelar da pele pálida, no gesto de limpar o sangue e bater com a lâmina na pia. Acabou-se. À vontade esperaria agora o símbolo de si mesmo crescer.

As voltas que a vida dá

ou, eu hoje estou feliz!

Pequenas felicidades surgem quando a gente destrava o botão do foda-se e resolve olhar a vida e o cotidiano (e a gente também) com um pouco mais de leveza. E esse olhar aí vai embora pra junto daqueles que convivem conosco: o amigo, o desafeto, o fornecedor que encrencou, o trabalho que nem sempre dá o prazer que gostaríamos.

Delícia saber que somos muitos, qualidade intrínseca da pós-modernidade. Não que eu acredite que sou fragmentada. Não tenho a estética do videoclipe, não faço mais de mil coisas ao mesmo tempo apenas no nível da superfície. Me envolvo, sofro, me alegro, travo, destravo, danço, amo, esqueço. Sou tantas, tão mãe, tão professora, tão afeita a maus humores dependendo do cansaço. Mas tão plena, tão doce, tão improvável, quando conquisto e festejo, quando almejo, sonho, relembro, provo.

De olhos sou fã. De braços. De conversas sem tempo para terminar. De longas caminhadas solitárias e produtivas, por tudo o que repasso, relembro, conduzo. São longas histórias que surgem, ideias, decisões. Nem sinto os pés, nem as mãos, nem meu corpo. Não vejo os transeuntes (nome feio que inventaram para esses seres que passam por perto, tão caminhantes e divagantes quanto eu), mas sinto o perfume do mar, esse calor que não dá sossego, o chão sob os pés.

Em todas as fases, a reinvenção é o mote. Aproveitando a deixa de um texto antigo, recrio a frase "vou abandonar aquilo que já me deixou". Não é um cântico de desamor ou de uma saudade dolorida, por alguém ou algo que simplesmente não deu certo. É só a percepção do apego a coisas impraticáveis, a desejos inconcebíveis, a fluxos que não nos cabem mais. Aquilo que já me deixou é o que não cabe mais agora. Nesse instante. No exato minuto em que a gente aprende a dar adeus.

A felicidade que nasce, o arranjo que nem parece, a escuridão que se forma e se mostra assim, agradável porque sem medo e sem vergonha, é mais um passo. Nenhum mais, nenhum menos, só um. Pra ele, esse passo, me entrego. E mudo, e canto, e encerro. Nenhum rancor, nenhuma dor, só leveza, porque dela preciso para os meus dias, assim como de doses pequeninas de angústia, fome, incongruência. Necessidade é de transgredir e transformar. De ser. E ser isso, totalmente fiel à mim.

Carlota
17032010

domingo, 7 de março de 2010

Certeza

Sábado me arrumava para ir à casa de uma amiga. Pronta, de frente ao espelho, ainda com o corretivo na mão, recebo um telefonema de uma colega de trabalho. Ela me diz: infelizmente eu não tenho boas notícias. Meu Deus, foi com ele? Não, com a mulher. Faleceu e o enterro será hoje, no Parque das Flores. Eu entendo se você não for, afinal tem os meninos. Eu disse que iria. O pai, coincidentemente, veio visitá-los. Liguei pra minha amiga, disse precisar ir a um enterro, portanto estava suspensa a nossa farra doméstica.

O engraçado é ter saído de casa, em Olinda, de ônibus, com a certeza absoluta de que o cemitério era na Várzea. Talvez porque o bairro me pareça bucólico e as flores me indicassem esse caminho. Não era. Cheguei ao lugar errado e liguei para a colega que tinha me avisado. Ela me ensinou como chegar, peguei um táxi e corri para lá. Mesmo naquela tristeza, os amigos reunidos conseguiram perguntar sobre a minha desorientação. Mas não foi. Se eu soubesse ser o lugar tão longe, não teria ido. O erro nesse caso foi providencial.

Ao chegar me deparo com o caos emocional do meu querido que perdera a esposa, a companheira, mãe de três filhos seus. Devastado, com os olhos perdidos. Senti uma dor tão grande e uma vontade de me aninhar em seus braços, ele que parece um urso de pelúcia e sempre me trouxe uma palavra de afeto. Como é bom ver você aqui, é sempre bom ver você. E eu apenas repetia: meu querido, meu querido.

Pensava: merda! Contaram-me que ele também está doente. E a sua dor me comove, incomoda. A de sua perda, a dos seus filhos, a de ver, de novo, fecharem à chave um caixão. Ainda sofro. Essa velha conhecida, que de tão ameaçadora nos faz esquecê-la, é para mim uma certeza amarga. Provoca nos que ficam o sofrimento pelos que se foram. Como dar adeus a quem nos acompanhou por mais tempo do que a idade que tínhamos antes de nos conhecer? Como dizer adeus e ficar, sabendo-se sozinho?

Nesses momentos sinto as palavras e as vejo insuficientes. Nada consigo falar. Não me acho capaz de aliviar a dor por meio delas. Fico ao lado, procuro abraços e mãos. Meu querido, meu querido, estou aqui.

|22072009|

sexta-feira, 5 de março de 2010

Pequenas coisas

Sou de pequenas coisas.
Livros de bolso.
Bilhetes.
Suaves beijos.
Estes me aquecem.
Sou de rompantes,
quando eles irrompem
e me travam e deixam cega.
Sou de vontade de ficar
mesmo quando vou.
Ou, porque vou
querendo ouvir: fica

quinta-feira, 4 de março de 2010

Aberta

Um vulto e eu fiquei feliz. Como se contasse aquele abrir de porta, de surpresa. A alma deu o pulo que o corpo queria mostrar e não pode.
Estranha alegria festejar o pequeno gesto. Como se de afeto fosse demonstração.
Abri a porta e ele tinha ido. Já esperava por isso. Preferia as mãos que ligeiras se afastariam. Mas era fim, de noite.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Domingo

Um final de domingo perfeito, pelo bem-estar e pelo estar comigo.



Estava lendo Para viver um grande amor, de Vinicius de Moraes, uma crônica gostosinha, na qual ele torce as palavras, criando jogos e invertendo os sentidos. Me deparei com a frase “mais vale um mamão na mão do que uma mão no pé. Não é”? Comecei a rir devagarinho, sorrisinho leve de quem não quer ter muito trabalho nesse quase final de domingo. Digo quase porque quinzenalmente estou sozinha em casa no fim de semana (quando nela fico) e posso dar uma esticada na hora de dormir.
A gente esquece, às vezes, o prazer que é curtir ficar só, sem papo, com música, livros, tv, rádio, pia com pratos que podemos lavar depois, banheiro para demorar horas, copos ou taças de bebidas preferidas. Da mesma forma que família é um lance bom, acolhedor, amoroso (a minha, pelo menos), encontrar minha alma e perguntar-lhe como vai é quase perfume, quase o jasmim que sinto de minha janela e esse vento bom que chega mansinho e me diz que o domingo quase acaba, mas ainda está.
Engraçado ficar horas com um mundo de gente, trabalhando sem parar, ouvindo música para não sentir cansaço e de repente bate essa vontade de apenas estar, de voltar e curtir a casa, a cama, o quarto, a sala, descalça, chão frio, olho de quem ainda está sem sono.
Ainda atordoada com o fato de que estou abrindo uma loja, estou em final de semestre, estou sem tempo de dançar (saudade do flamenco, de uma boate sem fumaça, de deixar o corpo entregue até madrugada), sem tempo, sem, sem, sem. E ainda assim, sem medo.
Hoje foi um bom dia. Fique o registro. Um dia bom, de trabalho com prazer. De alegria. Não dá muito para explicar o que é, mas ter pessoas queridas torcendo a favor é ótimo. Assim como ter uma parceria rendendo muito, até irritação – perdi o prumo esta semana, admito. Mas é isso, estamos nos afinando, preparando a inauguração. Contando os dias para a Entrelinhas abrir suas portas e a gente festejar mais um passo com nossos amigos. Vocês.

Início

Só vontade de reunir os textos, escrever mais vezes, ter prazer com isso.

Não se pode ter tudo

Ou a vida é feita de escolhas


A afirmação poderia ser definida como uma crença limitante. Uma amiga minha acredita, piamente, que no dia no qual alcançar o sucesso vai morrer. Pois é. Limitante. Quem iria querer a fama em uma situação dessas? Deus me livre!
É a culpa cristã nos ameaçando. Não podemos ser felizes, não podemos sonhar, não podemos ter tudo. E se a alegria me invade em um dia de sol, temo pelos dias de chuva que virão. Sim, às vezes estou tão bobamente satisfeita com o que sou e o que tenho, com as surpresas e transgressões, que páro repentinamente e reflito: isso com certeza não vai durar. Pois é. Feliz, alegre, satisfeita e vem uma nuvenzinha me dizer que eu não deveria estar assim, afinal não se pode ter tudo.
Retruco. Sim, é verdade. Mas nem por isso vou deixar de viver esse sentimento. Nem por isso vou abrandar minha ira ou minha capacidade de retomar. Fazemos escolhas todos os dias. Salada ou brigadeiro, casa de praia ou de campo, táxi ou ônibus, amigas ou namorado, balada ou pizza gelada, solidão, multidão. Li inúmeros artigos abordando a angústia de ter que optar por uma coisa e não poder ter a outra. E se alguém escolhe pela gente? Quanta dor.
A chave talvez não seja ter tudo. E, sim, ser tudo o que se quer ou se pode ser. Deixar fluir a alegria, a tristeza, vitórias ou decepções. Cada uma tem seu tempo. E tem também o tempo de ir. Quem sabe, cultivar canteiros inteiros de afetos ou minúsculas onze-horas. Quem sabe, aprender algo novo ou aprender com o que temos de mais antigo em nós. Esse corpo que envelhece, esse rosto que se transforma, a vida que não espera pela gente.
Não posso dizer que optei por ficar sozinha. Ainda olho vorazmente para casais de mãos dadas, aqueles bem velhinhos, carregando a própria história nesse caminhar a dois. Se observo um álbum com fotos de uma família feliz, quase me contorço de inveja. Esqueço, por momentos, que ninguém faz instantâneos da tristeza, das dores, dos problemas. Só há registros de bons momentos.
Aprendi a conviver comigo. A provocar. A me habituar à angústia, companheira desse viver da gente, não me rendendo a ela, mas aceitando-a como uma parte. Como é parte da minha vida a crença que somos seres em construção, inacabados, imperfeitos, errantes, errados, humanos. Deixemos de lado as limitações. A vida é tão curta. Quase não dá tempo de falar eu te amo. Apenas crianças falam a frase sem reservas, sem pudores, sem desculpas. Porque desacreditamos desse sentimento, como se apenas pudesse ser algo de pais e filhos, de namorados ou companheiros. O amor transgride, permanece, festeja. Se o tenho em mim, então amo cada dia porque nele eu estou.