terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Jano

Bem que você podia estar comigo nessa noite escura. Bem que essa noite podia clarear. E virar mar. E meus cabelos, que penso em cortar, se entrelaçam nos meus dedos, enquanto alterno a música que escuto com o que eu imagino. Resolvi escrever. Porque é essa ânsia de viver não sei o quê que vai criando uma angústia ou será apatia ou será qualquer coisa tipo saudade tipo uma vontade de não estar aqui e estar em qualquer lugar e não ser ou ser para você? Vai saber.

Dezembro filho da puta que me traz melancolia, dezembro filho da puta que me incomoda a ponto de quase me encher de tristeza e se ela não me invade assim com tanta força é porque tem gente ao meu redor. E eu leio almas e ninguém enxerga a minha. E eu me desdobro e enrolo mil fitas e não encontro prata, brilho, fome. Dezembro filho da puta que só me serve porque antecede janeiro, que eu recebo como o deus de duas faces, mas essa aí que olha pra trás eu esqueço, quero o novo, o recente, o que ainda não vi.

Que aninho foda, que aninho triste, que aninho insuportável. Já vai tarde, ano velho, feliz ano novo, que eu quero todo meu. De projetos sonhados, de verdade, de paixão, de felicidade. Porque corri e fui e perdi. Porque não houve apesar de ter havido, não tive apesar de ter buscado, putaquepariu, quanto lamento, lamento, lamento.

Tá, estou aqui olhando minhas dores, fazendo a porra de um balanço desnecessário, minto, odeio balanços, não reflito, não pondero, eu vivo. E nessa de estar perdida na noite escura do meu tempo, só me sinto só. Apenas. E como se não bastasse, me sinto só de novo e de novo e de novo. A noite é linda e eu estou dizendo pra mim mesma que eu quero que tudo acabe pra começar de novo. E eu fumo um malboro, bebo a terceira dose de uísque e me pergunto por que essa ausência que hoje é falta, por que impossibilidades, por que surpreendentemente não estou triste?

Por que tanta inquietação se na aparência sou uma pessoa apaziguada pela felicidade de ser tão bem sucedida ah quanto engano quanta vontade de dançar e dar uma sonora gargalhada e lhe surpreender. Ah, amanhã eu preciso correr. Vou à praia, de ressaca, três doses com gelo e muita água, mas me rendo, sou da noite e dela me alimento quando estou sozinha e minha cama tem mais de 20 vestidos que eu resolvi contar. E coloquei o guarda-roupa abaixo, sai pra lá, que eu não quero nenhuma memória afetiva em uma roupa que eu não vou usar.

E ainda é noite, bem que o sol podia agilizar, minha empregada chegar e eu, simplesmente, colocar o biquíni e ir à praia. Feliz, decidida a perder um quilo em uma semana como se meu peso todo fosse esse e como se eu não me sentisse leve e completamente solta do que eu sou ou aparento ser. De boa, a vontade é de não me encaixar em nenhuma expectativa, por favor não espera nada de mim eu só quero ir embora e só quero estar aqui e só preciso disso, desse conflito, dessa invasão que me diz que estou viva porque se houvesse paz o tempo todo, calmaria eu iria definhar porque não quero viver sem essa voragem, essa inquietude e no fim agradeço pela noite escura, agradeço o dia que vai clarear daqui a pouco, agradeço a você que me fez escrever e fazia tempos que eu não escrevia nada e era tão ruim e que vontade de um beijo seu, adeus.

Carlota
261211

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Tempo

Uma das coisas que nos ensinam na infância é que há tempo para tudo: para estudar, para brincar, para dormir, para acordar, para entrar de férias, para voltar às aulas. Tempo de namorar quando entramos na adolescência, de se apaixonar, tempo de escolher a profissão a seguir. Tempo de parar de procurar um amor porque ele chegou e a gente encontrou nossa metade da laranja.

Está certo que existem variantes. Cada um com sua história, essa pode ter sido a minha. Ou o que minha família me dizia. Sei que descobri que o tempo passa, não necessariamente os tempos. Pelo contrário, eles se alternam, a vida não é linear ou algo tão simples assim. Sinto não ter mais tempo (e dinheiro) para aprender tudo o que eu quero: espanhol, inglês, ilustração, flamenco, corte e costura. Sinto ter tão pouco tempo para me dedicar aos meus filhos (a vida me exigiu ser a provedora), aos meus amigos, às descobertas de novos afetos.

Nesse meio tempo, vou me sentindo irritada com quem pensa ter todo o tempo do mundo. E peço desculpas se a carapuça lhe serviu. A gente não tem tempo. A gente tem uns dias aí que se transformam em meses e depois em anos e de repente a gente vê uma senhora no espelho. Ou recebe a notícia de que alguém muito querido se foi. E, nessa agonia cotidiana de sobreviver, a gente tinha até deixado de conversar. Deixado de conviver, apesar de ter sido acolhida com tanta gentileza em um período de transição para casa e vida nova.

Não sei se me inquieta o fato de achar que às vezes perdemos tempo com histórias que foram mal resolvidas, com amores que ficaram latentes, com certezas nem sempre tão certas assim, com a grosseria que encontramos quase que diariamente, inclusive em nós. Não sei se consigo superar todas as mágoas e ir adiante em todas as vezes. Mas eu tenho tentado, já há algum tempo. Talvez pela morte ter sido uma figura próxima de mim desde criança. Perdi avô, pai, mãe, tio, avó (essa no seu tempo, mas continua me fazendo falta). E aí que as palavras que eu não disse, a convivência que me foi tomada, a cumplicidade que deixou de existir, criaram seus próprios espaços dentro de mim.

Também eu passei pela experiência de quase ter morrido. E sei que meus amigos estavam no hospital rezando por mim, na minha casa com meus filhos rezando por mim, imaginando o que seria deles e de meu então marido sem minha presença. Mas fiquei. E me cobro o tempo primordial de ser feliz. Quero ter sempre meus tempos de aprender, conviver, amar, me apaixonar, me equilibrar, me desequilibrar, continuar, viver. Porque pode haver tempo para tudo. Mas quando ele acaba, não há volta. Eu não estarei aqui.

Com amor, para Fábio e Botelho.
Carlota
05122011

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Vestida

Meu amor pelos vestidos me fez divulgar o desejo de recebê-los como presentes de aniversário. Sim, está pertinho, 29 agora para quem ainda não gravou, aprendeu ou sabe. Dia 29 Carlota faz 42 anos, com muito prazer. Pelo fato de estar aqui, na convivência com as pessoas que escolhi ter ao meu redor.

Sim, volto aos vestidos. São lindos sempre. Soltos ou justinhos, compridos ou curtos, de alcinhas, floridos, vermelhos, intensos, ingênuos. Vestidos. É tão feminino, é tão brincadeira, é tão criar personagens quando se quer... Vestida para matar, para o cinema, a caminhada na praia, o dia de sol, um breve passeio, uma voltinha ali onde não vou contar.

No entanto, em um momento desses, um desejo mais premente surgiu. Desejo de leveza. De um fio de alegria enrodilhado no meu calcanhar, puxando como um balão de gás hélio em uma caminhada um pouco mais dançante, quase desequilíbrio, pequeno flutuar acima das coisas.

Sim. Quero uma saia vaporosa. Um dia de sol. Leveza de ver sorrisos, sentir abraços, soltar amarras. Estou me garantindo no fato de que o inferno astral este ano foi em julho (apesar de alguns incômodos em agosto) e se limitou a aquele mês para pedir a vocês: leveza. Pode ser a espuminha do leite com café expresso, um algodão doce, mas pode ser também um jeito de olhar a vida, né? Preciso de leveza de presente! De uma sonora e sincera gargalhada, de um brinde! Um chocolate aerado, um pensamento arejado, uma vontade de alçar a alma ao infinito e curtir a dança, a festa, a pausa a fazer para um estado de contentamento. Sim, em espanhol: estoy contenta! Mais que uma simples alegria, é quase um arrebatamento.

Então, dia 29, eu quero algo melhor do que um vestido. Eu quero que você dê uma pausa, sinta-se contente e divida isso aí. Dá um sorriso, agradece, faz uma prece, sei lá. É primavera, como diria Tim Maia. E tem essa brisa no ar...


Carlota
14.09.11

domingo, 14 de agosto de 2011

O comum e o normal

Estava no banco dianteiro de um táxi quando meu filho caçula, que seguia atrás junto com seus dois irmãos, me pergunta: qual a diferença entre comum e normal? Confesso que naquele momento estava longe dali. Pensava em deixá-los com minha tia, ir trabalhar depois, observava o céu nublado, com uma chuva chata desabando de vez em quando. Eu estava e não estava naquele táxi. Daí a pergunta, assim, de repente, ter me forçado a voltar, lembrar que tenho filhos e que responder suas perguntas é uma das tarefas das mães.

Engraçado. Parece que eles também aproveitam as viagens de carro e começam a pensar, talvez por estarem absortos em algo que os provocou, talvez porque observam o dia pela janela e algo lhes chama a atenção. Como também vou nessa onda, é um dos momentos nos quais sou mais paciente para explicar (e se eles descobrem isso vão querer usar o táxi como refúgio para conversas difíceis).

Começo a responder. Comum é algo que se encontra em todo lugar, fácil de achar. Pode ser uma coisa, um objeto ou pode ser uma atitude. Por exemplo, é comum uma mãe reclamar com os filhos (e aí estava fazendo um mea-culpa, porque havia reclamado com os três e, um pouco me defendendo, dizia ser a reclamação algo comum às mães, não exclusividade minha). Então chegou o momento de dizer o que era normal e eu emperrei, achei os dois conceitos muito parecidos (e significam, segundo o Aurélio, a mesma coisa), fiquei pensando em valores, atitudes, em pessoas e não sabia dizer, realmente, o que era normal. Para mim é um conceito muito elástico, algo pode ser normal para mim e ser anormal para outra pessoa.

Terminei respondendo que normal era algo tipo respirar, ter sede, fome. Anormal então seria uma pessoa que não precisasse comer, respirar, beber para estar viva (em outras ocasiões fui muito, muito melhor). Daí meu caçula começa a dar o contexto de sua pergunta. “É que naquele posto tinha assim, gasolina comum”. E eu tive de explicar então haver dois tipos de gasolina em postos, a comum e a aditivada, essa última recebia substâncias para fazer o motor funcionar mais e melhor.

Depois disso quase sorri (é que o dia estava nublado). Como uma perguntinha tão simples me fez parar para filosofar? E segue assim o tempo. Às vezes basta uma pergunta, e a vida está cheia delas, para nos forçar a refletir, em um exercício infinito, que não se encerra nem quando encontramos a resposta.

Carlota
14082011

domingo, 31 de julho de 2011

Hoje

De repente eu ouvi você dizer que me amava. E de nada valia aquilo, porque não havia mais nada. Mas de repente eu ouvi você dizer que me amava. E todo o desejo de ouvir enquanto vivemos juntos e não ouvi e agora, o que é que eu faço, não, não vale mais. E eu ouvi, de repente, você dizer que me amava. E me deu uma vertigem, sei lá, uma coisa ruim, peito apertado, pra que isso, eu não ouvi. E de repente você estava sentado ao meu lado e dizia me amar e eu olhava sua boca e parecia uma dublagem mal feita, o som não batia com o movimento dos lábios e eu me descobri tentando fugir.

E de repente todo o amor que eu senti foi pro espaço, foi à merda, foi embora dali. Porque de nada me adiantava agora você dizer que me amava. Meu olho já fechava, minhas mãos e eu não corria em direção a você. Mas de repente me deu uma alegria, era seu jeito, menino, que jeito é esse de dizer que me ama assim, descaradamente, sem pudor de me deixar sem jeito e feliz?

E foi batendo uma vontade de lhe beijar com toda fome, de lhe tocar com meu desejo, de mostrar que ainda havia tempo. Havia? E isso, pra mim, era um tormento. Por que abrir a porta, entregar minhas chaves, meu jeito de precisar de você, se só hoje ouvi você, de repente, dizer que me amava? E eu digo, porra, eu amo você e não amo mais. Eu amo você quando me derreti nos seus braços, eu amo você quando vi seu olho brilhando pra mim em uma noite clara, eu amo você quando suas mãos deslizam e me dizem de um desejo que é anterior a esse amor que, de repente, você me disse ter.

E hoje eu quero só um passo, escuro, em falso, e nós dois.

Carlota
31072011

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O desejo

Ele cala fundo na alma e no corpo. Não a voragem que me incendeia ou que me destrói as esperanças de ser tranqüila. O desejo que cala fundo em minha alma é justamente esse, o de me sentir apaziguada. Mas o corpo me cobra movimento, articulação, inquietude. O corpo me exige ser. E ser toda, totalmente entregue e viva.

Desejo de amar você. Desejo de ser amada tão intensamente, tão apaixonadamente, tão ler junto e querer e descansar a cabeça nos seus ombros e beijar de mansinho e confiar e deixar o medo para depois, para um dia em que eu me encontrar com algo que eu não reconheça. Não agora, quando posso tudo nos seus braços.

Tão racionalmente eu pergunto porque preciso de algo externo a mim que me traga alegria? Ou a plenitude e a cumplicidade? Mas também reagimos ao outro, também vivemos porque outros nos vivem e pensam e vêem. Também nós vemos, queremos, buscamos. E o outro se revela presente. Assim como nós estamos, ele também está.

Se desejo tanta tranqüilidade por que meu peito arde? Por que me sinto furacão? Por que o céu está vermelho, tingido de morte e dor? Por que o céu surgiu rubro, carregado da vida inteira que trago e que me faz intensa assim, feliz assim, plena assim? Por que a necessidade de sentir com tanta força? Para provar a minha? Para dizer que posso? Para mostrar que sou?

Porque meu caminho no mundo poderia ser de suaves passos. Mas sempre os tenho firmes, sempre são ligeiros, sempre fujo para o calçadão quando preciso de mim. Quando me encontro, quando me revelo, quando quero. Porque no sagrado instante em que sou só no mundo, ele pode ser todo meu. Porque no exato minuto em que me entrego à minha alma, ela se espalha por toda a minha pele e me leva para qualquer lugar.

Ah, esse desejo de ser apaziguada no que eu tenho de mais forte. De encontrar alguém que vença a resistência de muros tão frágeis. Dessa parede de nãos que eu mesma construí. A negação da própria força, da minha leveza, da minha sabedoria, do meu perdão. Negar meu desejo de ser o que eu sou. Não menina, delicada, incapaz. Inquieta, sedenta, em busca.

E se eu pudesse me tornar incandescente? Por que, pergunto, não ser feita do que já sou e continuar a me refugiar em histórias tão antigas, medos, incompletude? Por que meu desejo de ser amada como se o amor só fosse possível entre seres iguais nos gestos e não na compreensão do que temos de incomum?

O desejo de encontro. De minha tranqüilidade e da minha paixão. Minha alegria e minha leveza. Meus dias de caminhar a passos largos, como se o mundo fosse meu. E é. O mundo que construí e que vai se erguendo a cada dia. E não importam furacões, voragens, céus vermelhos. Trago mares de águas mornas e calmas, velas esfumadas, viagens. Trago olhos de enxergar beleza e um caminho inteiro. Trago desejo.

Carlota
21062011

sábado, 21 de maio de 2011

De como a vida é assim

Assim, sem mais nem menos, deu pra me dar um banzo vez em quando. Banzo que aparece quando as amigas mais próximas estão correndo tanto, como eu, que mal tem tempo de conversar e trocar papos legais, daqueles que trazem coisinhas miúdas ao seu redor. De como o ônibus estava cheio, do caos no qual se transforma a cidade em dias de chuva, que quase nos faz ser tragadas pela maré, do filho que tirou a nota máxima em um dos trabalhos que você ajudou a fazer. Também acontece dessa incomunicação se tornar incômoda, daí que o banzo vai, vem, como se ausência implicasse na diminuição do afeto que sentimos uns pelos outros.

Sei que estava tão esfuziantemente contente nesta quarta-feira, tão cheia de planos e de beleza, que não me dei conta da quinta na qual ministro 10 horas aula. E quando ela nasceu, a alegria foi minguando de mansinho. Talvez porque me lembrei mais dos problemas do que da aparente solução deles. E caiu de começar a chover e bater uma puta ventania que quase me arrasta junto. Calhou também de eu não conseguir resolver um lance e chegar atrasada no trabalho. E de não ter almoçado e de estar cansada e de não ter notícias de gente querida.

Só consegui dormir a 1h30 da manhã, para dar conta de três pareceres que eu tinha de dar como avaliadora de um congresso. Pois é, inventei de me inscrever para ser avaliadora e lá estávamos frente aos três trabalhos e ao computador. Quanto sono. Daí que acordei às 6, consegui fazer os meninos irem para a escola no horário e decidi arrumar logo as roupas, os livros e ir caminhar na praia. Porque para mim essas caminhadas intercaladas com corridas estão contribuindo para a minha sanidade. E no caminho de volta foi voltando também a alegria. Porque enquanto corria ao sabor do vento (e não contra ele), a leveza foi chegando também. E eu pude flutuar em um espaço vazio, no qual o banzo, mal entendidos, chateações e ônibus cheio no final da noite não tem vez.

Deixei que a alegria se mostrasse na areia da praia, no mar, no céu cinzento, nas pedras, agudas como alguns pensamentos. Deixei que se infiltrasse em mim o prazer de estar ali, naquele momento, ao invés de estar na cama, entre meus lençóis quentinhos. Mas quem quer um lençol maravilhoso se o sono embota os sonhos? Se a gente fica perdendo tempo parado, ao invés de fazer algo que goste muito? Se todas as chances, movimentos, idas, voltas, ficam presas num esquema que é meio medo e meio apatia mesmo?

Lembrei de quantas decisões tomei nessas caminhadas. De como construí textos inteiros em minha cabeça. Como as palavras formaram frases impregnadas de verdade, porque vinham do que eu estava deixando fluir. Não digo que não estou mais cansada, as pernas doem após 50 minutos em ritmo intenso. Mas decidi hoje ficar alegre, leve, atenta. Para aquilo que começa, o que termina, o que vai permanecer. Esse último aí, sem dúvida, sou eu. Eu permaneço. Completamente fora de prumo às vezes, totalmente inquieta, com vontade de ficar em silêncio absoluto, de não trocar palavras, gestos, arrepios. E também, insanamente, arrepiada quando quero viver. Porque pra mim é tudo intenso. Tudo parece estar a um passo de acabar, como se não houvesse mais tempo. E o tempo de ficar parada, em apatia, chorando as mágoas, deixei passar.

Carlota
20052011

(em resposta a uma amiga muito gente boa, Anna Constantino)

terça-feira, 10 de maio de 2011

Submersa

Sob a água pressinto o desejo.
E no seu beijo.
Sob a água afogo meus medos,
deixo a vida aflorar.
Submersa, a alma subverte
a ordem das coisas
e eu, novamente,
me encontro em você.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Intervalo e 3 atos (Dor)

Comecei a caminhar devagar pelas ruas. Quase tateio a calçada com meus pés. Se vou à praia o cuidado é com o terreno arenoso. Se no campo, com as folhas derramadas de tantas árvores. Sigo lenta, buscando o equilíbrio, sentindo a firmeza ou encontrando antecipadamente aquele espaço vazio onde posso resvalar e cair.

Uma torção no pé direito me obriga a isso, a um excessivo cuidado com a forma como piso. A uma extrema consciência do entorno, não apenas feito ele de concreto e coisas, mas de pessoas que me olham e enxergam alguém que segue devagar. E observa.
Nessa fase, de começar lentamente porque não há como ir rápido, pelo menos por enquanto, estou retomando meus diálogos impossíveis. As longas conversas que eram pródigas quando caminhava com velocidade na beira-mar. Cerca de 50 minutos de reflexão em quatro quilômetros de calor e convivência pacífica com outras pessoas, nem sempre comigo.

Primeiro a desilusão com minhas férias. Dez dias com o pé imobilizado me obrigou a deixar as tarefas domésticas de lado, os planos de fazer pratos deliciosos para a família, as ruidosas saídas com minhas amigas, a dança a qual me entrego quando estou feliz. Foram dias em casa, ouvindo as conversas miúdas de meus filhos, suas brincadeiras, de ver a bagunça e tentar dar um jeito quando o pé melhorava.

Mas a dor me aguardava. Intensa, feroz, incômoda. Dessa vez, no ombro direito. Parecia apenas que eu havia dormido de mau jeito. Não. Meu corpo avisava da necessidade de parar. Parar totalmente. Não olhar email, não encostar no computador, não encadernar blocos, projetar layouts, aceitar convites de trabalho.

Não escrever. Como doeu tudo isso. Sentir-me incapaz, impotente e, ainda, sofrendo uma dor tão atroz que não conseguia dormir. Que me incapacitou temporariamente para qualquer raciocínio lógico. Que me fazia chorar silenciosamente porque um grito me tiraria o fôlego. Que me deixou dependente de minhas crianças e amigos.

A dor provocou mais. Me fez perceber o que todos que sofrem uma dor aguda observam. A desimportância de inúmeras coisas, ínfimas essas coisas, pequenas, quase manias. Perdi a vontade de reclamar da bagunça que as crianças naturalmente fazem. Elas, em suas brincadeiras, me deixavam descansar. Olhavam preocupadas as minhas lágrimas e me ajudavam no que era possível: vestir, pentear, arrumar minha cama. Meu filho mais velho me surpreendeu com sua delicadeza ao desembaraçar meus cachos. A mão suaveconduzia o pente com imenso cuidado, com medo de machucar.

Entreguei-me à generosidade desses cuidados, no aprendizado de aceitar ser cuidada. De também receber atenção. Minha amiga se dispunha a sair do trabalho para me levar às sessões de acupuntura. De me levar em casa quando a noite chegava. Meu ex-marido me surpreendeu lavando os pratos de dois dias, arrumando minha casa, fazendo compras, incentivando a quietude entre nossos filhos. Deu-me a atenção necessária para que eu me sentisse melhor. Em meio à dor, aprender a receber sem reciprocidade, apenas sendo grata, me fez refletir ainda mais.

Assim como o tratamento. No percurso inteiro, médicos, amigos, fisioterapeuta, acupunturista se revelaram pessoas extremamente gentis. E como, em um processo de dor aguda, é preciso gentileza. Aquele traço de humanidade que indica respeito pela dor alheia.

A acupuntura trouxe ganhos inesperados. As longas conversas que mantinha comigo enquanto era obrigada a ficar mais de 20 minutos imóvel, com o corpo permeado de finíssimas agulhas. De início apenas dor. Depois gratidão. No final, encontro. Encontrei a mim mesma naquelas 11 sessões. Era uma imersão em minha alma, me livrando de pesos que não precisavam estar.

Intervalo e 3 atos (Morte)

Minha sogra morreu no dia 14 de fevereiro, quase dez anos após a morte do meu sogro. Sofria no hospital com dores, inchaços, escaras. Sofria daquela vontade de ir embora e se livrar de um corpo que já não lhe pertencia. Fui visitá-la apenas uma vez, após uma das sessões de acupuntura em que me senti tão cheia de amor, que precisava extravasá-lo em carinho e palavras amenas.

Quando a encontrei agradeci por tudo o que me deu. Toquei suavemente seu rosto, toquei, toquei, dizendo como gostava dela. E ela disse-me: “Você não sabe como isso é um conforto”. Resgatei o que sentia por ela quando nos conhecemos, quando ela me amparou após o meu primeiro filho, sem lembrar dos atritos que me afastaram de sua casa, a qual só visitava quando era seu aniversário. Só quis dizer, tocando o seu rosto,que estava ali e queria por alguns instantes amenizar a sua dor.

Não fui ao velório. Cheguei em cima da hora para o enterro, ainda com medo de encontrar a atual esposa de meu ex-marido. Não seria uma ocasião interessante para trocar palavras, nós que já nos encontramos outras vezes. Nenhum com a família dele presente. Como seria assumir o posto de ex e ver a nova mulher receber os pêsames junto à família? Sabia que iria me sentir constrangida. Mas ela não foi. E terminou que eu recebi o carinho de gente que não me via há muito, muito tempo.

Meu ex-marido desamparado. A morte faz isso, dos pais principalmente. Fiquei ao seu lado, caminhando abraçada. Perguntei se precisava de algo, avisei estar disponível para conversar. Lembrei da visita ao hospital e falei sobre isso, sobre ter me despedido dela. Enredei-me em tristeza, na constatação do envelhecimento, da irreversibilidade da vida. Não gosto de despedidas.

Intervalo e 3 atos (Verdade)

É que um dia pensei em resgatar algo. E me envolvi com alguém por quem fui muito apaixonada.Como se concretizar a paixão fizesse voltar o tempo. Ou melhor, o sentimento mútuo. Talvez por isso a gente se encontrasse. Até constatar o óbvio. O que sentimos não volta. E ler a verdade em um de seus emails me fez perder a vontade de estar. Decisão tomada, aceitar as coisas, seguir com leveza. Para combinar, me vesti de palhaça dois dias no Carnaval. Não o clown melancólico, mas o pândego que se
espalha em sorrisos, dança e brinca alegremente. Sem máscaras, apenas os olhos pintados. Pra realçar a vida que trago em mim.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Roda gigante

A história de nós dois podia ter tido uma roda gigante. Uma tarde no cinema. Podia ter tido um beijo roubado no final de um corredor. Ou dois românticos incorrigíveis em busca de noites de lua cheia, praias desertas, músicas cantadas ao pé do ouvido.

Houve cartas e textos que escrevi. Dos que mandei por email guardo lembrança. Da única carta, não faço idéia do conteúdo. Lembro vagamente de achar que não era. Ou que era algo mais doce. Entre uma vontade de me perder, cansaço. Quando será que começou essa história? Quando sem perceber passei duas horas desenhando você em minha caderneta. Hoje olho o desenho e percebo a quantidade de afeto na fiel reprodução dos pelos do seu braço direito. E como o seu esboço parece com você.

Também sorvete e café, uma cúmplice brincadeira que começou quando quase não havia nada. Só o coração meio descontrolado, mas devia ser impressão essa vontade de comer um pote de sorvete em conjunto, encostados em um posto de gasolina. E de caminhar tanto, tanto, só para evitar a despedida. Quando mais tarde já havia muito, o sorvete era comprado novamente em uma loja de conveniência para dar sabor de menta aos nossos encontros.

Podia ter havido uma declaração de amor verbal, carnal, expressada veementemente. Podia ter havido noites mais claras e não essas noites que passei em claro no sofá da sala. Eu podia ter bebido menos e não ter ligado. Podia ter sido uma outra. Mas fui eu.

Eu que fui ao seu encontro. Eu que me permiti. Eu que me apaixonei e desisti 150 vezes e mais duas. Eu que quis partir. E o café, a noite, o sorvete; o uísque, cerveja, batata frita; a música, o filme, os clipes da MTV; os presentes, as presenças, o calor e a insônia. Os corpos no chuveiro, a água morna e quatro mãos se alternando em suaves e rápidos afagos nas costas.

Será que a roda gigante iria me salvar da insônia? E se tivesse sido antes? Antes de saber tanto de mim? Antes desses 200 anos que carrego em caixas? Antes de uma dor que me partiu? Acho que não era roda gigante afinal. Nem montanha russa, parque, praça, casa. Sempre foi janela e portas. Fechadas.

(E nesse ponto me arrisco em uma gargalhada, largo o mouse, bebo o que ainda está no copo e vou dormir. É bom o silêncio daqui).

Carlota
25032011