quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Sobre os tempos

Faz tempo quero escrever esse texto, motivada principalmente pela conversa com um amigo querido. Aquele que há alguns anos é um dos afetos que dividem o espaço do cotidiano em mensagens pelo whatsapp, recados no fb ou nos fortuitos encontros que acontecem pra nos lembrar que sempre é tempo de conversar e aprender mais sobre a gente.

Em uma noite na qual estava particularmente melancólica, ele relembrou de mim, tirando do juízo a lembrança de minhas próprias reflexões sobre um momento da vida dele. E fiquei lá, meio besta, me perguntando porque tem horas que a gente desaprende a viver aquilo no qual acredita. Sei lá que coisa doida é essa, que desarvora tanto e nos deixa sem ação. Sem vontade. Sem memória. 

São tempos, Carla. E lá foi ele me dizer o que eu mesma lhe havia dito. E que lhe tinha sido afago. Que a gente precisa entender que nem sempre tudo vai durar pra sempre. Que há os tempos de cada um junto da gente, assim como o tempo pra dor, o tempo para aquele riso solto ou pra carreira desabalada que a gente dá querendo encontrar alguém. 

E nem por isso, quando acaba, quer dizer que foi ruim. Nem por isso, quando acaba, é preciso sofrer pensando no que ficou pra trás e que às vezes volta, tão forte, que faz uma falta danada. Daquele colo incrível, da franqueza possível e construída junta, da familiaridade de dividir segredos com as pessoas que te recebem pela madrugada, cedem seu tempo, sua família, sua casa e apenas acolhem. 

Tem tempo que amizade acaba. Tem tempo que amor vai embora. Tem tempo do irmão que morre. Tem tempo do rebento que cresce e surpreende com o tamanho dos próprios sonhos.  Tem tempo de sentar na mesa e chorar. De morder o lábio de nervoso. De pingar a lavanda pra ansiedade acabar. 

Tem tempo pra tanta coisa e cada uma com seu espaço na vida, ou sua ausência, que é preciso, ou melhor, que eu preciso ver de pertinho com meu coração. Cheio de reservas, como quem estranha ser querido. Como quem às vezes se vê muito alegre e tranquilo. Ou descobre amor pela muda de limão galego que trouxe de um hostel na Vila Nazaré. Pedaço de gentileza que espero ver crescer. A seu tempo.

Para Marcelo, Clarissa, Jéssica e Francisco

Carlota

01122016


quarta-feira, 27 de julho de 2016

Sobre minha avó

Escondeu direitinho todas as histórias de infância e adolescência que não fossem aquelas que quis contar. Teve um irmão, Daniel, uma mãe, Josefa, não sei o nome de seu pai. Trabalhou na Renda Priori, morou na rua dos Pescadores, conheceu meu avô no Batutas de São José. Tinha uma cicatriz no lábio. Quando perguntei, respondeu brusca. E não falou mais. 

Era uma mulher forte. E só reconheci fortaleza quando me peguei olhando pra trás. Quando vi a coragem que é se impor em um universo branco e masculino, onde a mulher não cuidava dos negócios e, possivelmente, era enganada quando perdia o marido.

Só reconheci a beleza arrebatadora de sua alma, quando entendi o quanto acolheu todos os amigos, as amigas, os párias, as exceções. Seguia firme e só cambaleou quando as pernas começaram a doer.  O passo ficou pequeno, inseguro, e seu ir e vir “à cidade” mais espaçado.

Nunca foi de chamar pra cozinhar. Não suas netas, pelo menos. Nunca foi muito de macaxeira. Antes cuscuz ensopado, banana comprida, fatia parida, sopa de feijão. Entrava na cozinha e o almoço saía na hora. E fui aprendendo a cozinhar de tudo, sem medo. Ela conduzia.

Ninguém a enrolava no troco. Tinha só o quarto ano primário e dizia sempre: estude pra ser gente. Olhando pra trás e pra frente, cada vez que fui a um museu e me deparei com uma obra de arte; cada vez que vi o mundo em uma nova cidade; cada vez que venci uma etapa – uma delas no dia de seu aniversário – era dela que eu lembrava.

Foi pra Dona Creusa que corri no primeiro emprego, quando ainda tinha dúvidas. Foi a primeira que soube do primeiro bisneto. Era no espaço de sua cama solteirão, ao lado dela, que eu ficava pra curar as feridas ou falar das coisas da vida.

Era escorpiana de 24 de outubro, nasceu em 1919. Quando morreu, quase não tinha brilho nos olhos. Dois anos antes tinha perdido o caçula. Aquele pra quem tinha o jeito mais amoroso. E de quem sentia falta todo dia.

Tive a sorte de contar com seu afeto na infância e na vida, de pousar a cabeça no travesseirinho feito na barriga, de ter aprendido o nome das ruas do centro do Recife de tanto visitar as lojas que hoje nem existem mais.

Da senhora, Dona Creusa, ainda queria a convivência com os bisnetos. Eles iam aprender direitinho o que é ter uma avó de implicar brincando, de costurar vestidos, de avisar que o mundo é grande e a gente cabe nele. E, hoje ainda, quando escuto a ave maria, lembro de quem me ensinou a viver. A benção, minha vó.

Carlota
27072016

domingo, 17 de julho de 2016

Espaços habitados

Hoje me peguei andando pela casa, descalça, tentando encontrar um velho caminho que já não faço mais. O chão não tem mais o frio da cerâmica. Não preciso mais subir escadas para chegar ao quarto. Há pouco aprendi o lugar de todas as tomadas e interruptores. Ainda me assusto com o ruído de motos velozes pela madrugada. E olho a porta de madeira tentando ver o terraço que, ops, virou varanda ladrilhada.

Fico sentindo a mudança como tentativa de encaixe. Meu corpo se estende, amplia, reverbera pelos cantos, paredes, pelo piso de madeira. Sou do tamanho desses quartos, das janelas que ocupam uma parede inteira. Sou do tamanho da cozinha, da área onde coloquei a máquina de lavar.

Ocupar, habitar, viver. Comecinho tive de acalmar o coração enquanto desencaixotava os lençóis, os pratos, meus livros. Tive de me convencer de que o caminho era certo, que tudo ia ser bom. Tive de falar isso várias vezes pra mim. Já acendi incensos, instalei a rede, quase matei uma planta, dei sorrisos aos vizinhos.

Já recebi amigos, pra visita, dormida, cerveja, vinho. Um de cada vez, porque ainda tem um monte de reticências aqui. Mistura de medo de me apegar ao espaço, como era à minha buganvília, ao jardim da frente de casa, à goiabeira, ao pé de laranja. Às janelas da minha cozinha. Aos pássaros pela manhã.

Faz pouco descobri um ninho na árvore que cobre praticamente todo o meu andar. Ele fica bem pertinho da janela dos meninos. Dei um sorriso e procurei passarinhos. Eles cantam bem cedinho, talvez pra avisar que eu não devo sentir tanta falta de casa. Que casa é minha alma habitando o espaço em que resolvi pousar. Com um trio amoroso e cúmplice bem junto. Eles me ancoram. E habitam esse lugar.

Carlota

17072016