sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Varrendo a saudade


Aquela mulher pequenininha me encheu de cócegas e ainda me ameaçou com um mergulho corporal, provavelmente pesado, quente e alegre. Foi bom ver seu riso e os olhos brilhantes pela recordação. “Um mergulito”. Sua descrição encostada na parede foi tão boa que consegui visualizar a cena: mãe e filha abraçadas na cama após um pulo surpresa dessa menina gata e amiga minha.

Durante um fim de semana estive ocupando um apartamento à beira do rio Capibaribe. Eu, amadora desenhista e fazedora de farofas e brigadeiros, não tinha força nos braços pra eliminar de vez as dezenas de caixas acumuladas em um dos quartos. Me envolvi com a pintura e ilustração de uma das pilastras, enquanto amigos lixavam móveis, furavam as paredes, penduravam quadros, arrumavam a casa e também bebiam, escolhiam e cantavam músicas, dançavam, viviam.

Eu me senti encaixada num espaço privilegiado. O de memórias, permanências, novidades. Cada móvel em vistas de ser restaurado; as plantas; a infinidade de copos, taças, canecas. As maravilhosas janelas e a cidade logo ali.

Me dei conta da importância de preservar. De cuidar. Guardar. Cada caixa aberta, na arrumação do segundo dia, ia revelando um pedaço de vida de Gabriela. As cartas ilustradas do amigo músico. A coleção de Agatha Christie, uma infinidade de lenços coloridos. Telas em branco ou pintadas, santos, anjos, um aparelho de sushi. Nada ali descartado ou deixado para trás. Preciso foi apenas buscar espaço, organizar, doar o que era demais, mostrar o que nem se lembrava.

Então fiquei pensando naqueles que ao mudarem de casa, espaço, deixam tudo para trás. Ao encontrar um apartamento antigo, tratam logo de reformar o banheiro, retirar os tacos de madeira, providenciar porcelanatos. Parecem avessos a apegos, lembranças. Gabriela trilha o caminho oposto de quem acha tudo descartável. Restaura, manda reproduzir os azulejos antigos e, mesmo quando incorpora móveis novos ao ambiente, revela o muito que traz dentro de si: cada espaço recebe objetos que são apenas dele. E fazem a casa ser sua inteiramente.

Ciúme quando a imagem da foto foi mostrada apenas a Mariana. A minha sem vergonha cara de também quero ver o que é. A imagem fez Gabi chorar – desculpa – e, ao mesmo tempo, deixou-a mais parecida com a fotografia. Quis contar e nem disse para Mariana (o que aconteceu só em outro encontro). Da lembrança da primeira farra gastronômica na sua casa, após seu retorno ao Brasil. A primeira que eu fui.

Ao chegar à portaria do prédio em Setúbal a fortíssima sensação de estar sendo acolhida em uma onda quente de quem quer bem e gosta de casa cheia. E que a gente tinha comentado isso na mesma noite, a casa alegre. Como o seu apartamento no sábado e domingo de ocupação. 

E ao lavar os pratos, ouvir música e ver suas memórias, no ocupar a cozinha e na alegria de beber descalça e livre, me achei artista. Na permanência de uma pilastra que ainda nem terminei de pintar. Mas que está assim, carregadinha de lembranças pra você. 

Para um povo muito foda: Gabriela Valadares, Antonio de Hollanda, Rodrigo Riszla, Mariana Freitas, Jr. Black, Raquel e Maria.

Carlota
1910-01112013

domingo, 29 de setembro de 2013

Facas, batons e malabares



Terça-feira última, desta semana na qual fiz aniversário, encontrei Gabriela. E, na conversa, disse pra ela: preciso de uma faca! Se alguém quiser me dar um presente de aniversário, me dê uma faca, por favor! Ela rindo daquele desabafo de quem está sem funcionária desde janeiro e precisa alimentar a prole. Pois é, maior simplicidade né? Mas vá cortar um bife com uma lâmina cega. Uma infelicidade, um tempo perdido, uma agonia e eu querendo cometer um harakiri!

E como a amiga é atenta aos meus librianos apelos, recebi hoje de suas mãos um belíssimo exemplar da marca Tramontina. Pense numa alegria. Amei o presente. Amei que veio dela, essa criatura tão boa cozinheira, além de bela. Que de quebra me traz Mariana. E recado dos que não puderam ir almoçar comigo neste domingo.

E então lhe prometi uma crônica, assim, tão singela quanto o pedido atendido. Mas vital, sabe? E então vou ainda incluir Alfredo com o licor de fruta; Silvana com o hidratante Victoria's Secret; Anna com o batom lindamente vermelho, a cor da sorte porteña (eita saudade de Buenos Aires, Anninha). E minha família, que após anos resolveu comparecer! Os filhos bem juntinhos. Café da manhã na cama (eita, foi antes isso) do caçula. Uma amorosidade, derretimento, Bruna, Teresa, Bosco, Wal, Carlinhos, Gecira.

E o que a faca tem a ver com um aniversário? Tem porque descobri por esses dias que, no momento, estava precisando de quase nada. Tenho inúmeros vestidos e sapatos. Uma casa minha. Mesas, cadeiras, sofá. Cama, chuveiro, jasmim e goiabeira. Anéis. Colares. Brincos. Bolsas. Lápis aquareláveis e papéis especiais. Dinheiro podia ser mais, pra viajar talvez.  

Não que minhas necessidades sejam poucas. Preciso de doses diárias de beijos e afeto. Preciso de pessoas alegres. De desafios. Literatura. Beleza. De lua cheia. De abraços. Praia. Caminhada. Parque. Casas para visitar. Orações.  E a precisão, sempre muita, também é atendida. Com um escancaramento de felicidade quando consigo ter tudo quase junto. E aquele banzo suave ou incômodo que chega quando fico perdida em temporais.

Minha querida, podia falar do simbolismo de uma lâmina tão afiada. Pra cortar amarras, além do bife diário. Pra ceifar as ervas daninhas do coração. Pra empoderar e fazer de mim uma valente guerreira! A de boca e anel vermelhos. De paixão. Verdadeiramente, cortar os pesos e ver nessa ausência de quereres materiais um lance mais gostoso. O de estar. O de não ter vergonha de ser. O de, novamente, curtir reunir os amigos para o aniversário (ano passado me escondi um pouquinho, mas foi preciso).

Quando acordei hoje, meu dia, meu ano novo começando, pensei em presentes humanos. Nesses meninos impossíveis e bagunceiros. Nos seus sorrisos. Nos seus beijos. Pensei na leveza de estar me sentindo bem. Li mensagens no facebook. Li mensagens no celular. E teve tanto afeto, sabe? Desses imensos e que, agora, me dão aquela puta vontade de chorar de alegria. Porque é essa intensidade, essa vida que carrego, esse amor todinho, essa Carla menina louca por brigadeiro e a mulherzinha que quer batom vermelho, a da cerveja e Adilson Ramos. A escondidinha fazendo haicais. Uma clandestina que vez em quando pega um bonde errado (e mesmo assim ótimo). E essa previsível mãe de três filhos, 44 anos completados às 11h30 de hoje. Libriana, com ascendente em capricórnio e libra no meio do céu. E, pra encerrar, os malabares. O imprevisível daquilo que a gente não vê.

Um beijo, bem vermelho :)

ps: te amo, tá?!

Carlota
29092013

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Marina


O que se espera quando se escolhe o nome de uma filha? Primeiro, se espera ela, justo ela, a que reinaria absoluta entre dois irmãos. O que significa: adeus à síndrome do filho do meio. Ela  reina, independente de qualquer coisa. Que gênio é esse? E que doçura nesse jeito doce que ela tem. Uma morenice que vai impregnando a gente e de repente, sem querer, um enredamento nessa pessoinha tão linda e viva, viva, viva.

O que poucos sabem é que, ao escolher o nome da minha menina, Marina, fiz inspirada por uma aluna de jornalismo: Marina Moser. O que chamava a atenção? O fato dela ter uma vibe instigada, ser decidida, saber o que queria desde logo. E eu, grávida de alguns meses, pensava: quero que minha filha seja forte assim, tenha esse riso, esse jeito de quem quer pegar a vida com as duas mãos e dizer que sabe sim o que fazer com ela.

Anos depois, reencontrei a ex-aluna. E o abraço funcionou para lhe contar que minha filha tinha seu nome. Não em homenagem, não pela convivência, que foi pouca. Mas pelo tudo que em pouco mais de quatro meses ela, como aluna, foi me mostrando. E ouvi-la dizer que eu estava bem depois daquele tempo, e saber que tínhamos uma amiga em comum, e vez em quando encontrá-la em algum bar com pessoas legais, só me fez entender que aquele brilho, aquele olho de quem vê coisas ruins e boas e sabe quais são elas, inspirou e carregou de uma energia boa o nome que decidi dar à minha filha.

O pai e uma amiga disseram: coloca Morena. Eu respondi: seria óbvio demais sendo minha filha. E, sendo ela quem é, tudo seria, menos óbvia. Pois sua morenice, beleza, doçura, força, tem em parte tudo o que desejo de bom pra todos aqueles que eu amo muito. Que haja encontro, poesia, beleza, chuva, cuidado, comida comida junto, sonho, perfume, energia e traços de transgressão. Porque sem ela, ah, sem ela, a vida estaria perdida!

Com um beijo e abraço de aniversário para a bela Marina Moser, que ontem tive o prazer de reencontrar. Feliz aniversário, Marina!

Carlota
120913

domingo, 7 de julho de 2013

Desvio

Sim, vez em quando eu vou ficar muito, muito puta com qualquer pessoa que não atente para o fato de que eu tenho 43 anos e todo um passado e um futuro. Tive sonhos que não se realizaram, tive presentes inesperados, tive afetos, tenho afetos, tive decepções, meu caro. E paixões e cigarros e uísques e taças de vinho que abrandaram a ira quando ela chegou. Assim como as palavras amigas de quem foi comigo naquele dia àquele bar e cedeu a compreensão necessária para abrandar uma dor que era intensa e ameaçava me sufocar.

Que um cara chegue e diga pra você como seria bom que você fosse outra ainda me espanta. Como assim, como posso ser outra se sou essa mesma que está na sua frente agora e que te prendeu ou enredou em uma história cheia de pequenos prazeres e grandes alegrias? Ou seria o contrário?

Raiva. Após ler um post sobre o feminismo ainda estar ativo e ser necessário; após ler outro no qual a beleza de uma atriz americana é ressaltada e como ela se queixa disso; após ouvir de alguém – eu queria que você fosse minha, que você fosse outra... Puta que o pariu!!! Só respondi: se eu não fosse ou tivesse sido ou vivido o que vivi, eu não seria essa que está conversando com você.

Peloamordedeus!!! Me libertem da pretensão de ter de zerar minha quilometragem para agradar qualquer pessoa que se aproxime. Setembro completo 44 anos. Tenho um filho que vai fazer 15, uma menina linda de 13 anos, um caçula que vai ter 12 jajá. Tenho uma cicatriz de 10 centímetros no abdômen – essa me garantiu a perda do medo e a liberação do grito necessário pra viver.  Ah, querido, não me peça o fim do furacão. Não me peça não ter paixão. Nem não ser intensa, porque sou. E nada, nada vai mudar essa pessoa em constante transformação. Apenas a necessidade de transgredir, de expandir, de sair da minha zona de conforto e partir.

Horror de quem me vê unilateral. Quem  vê apenas uma faceta, apenas um lado, apenas fragilidade porque choro vez em quando. O que menos sou é frágil. Sou apenas uma pessoa que quando não dá mais, chora. Quando não dá mais, para. Quando não dá mais, respira. Quando não dá mais, corre no calçadão até nem conseguir respirar mais. E segura a âncora que criou na imaginação. E que sou eu. Feita dos que me amaram, dos que me seguraram, dos que me ouviram, dos que foram amados, dos que ainda são. Dos amigos, dos afetos, da família, do trabalho. De cada conquista, de cada sonho, de cada merda que eu fiz e me arrependi. De cada perdão que não consegui, de cada perdão que eu lancei sobre alguém.

E juro, se alguém mais não quiser ver os olhos castanhos de alguém de 43 anos, de alguém com sua história que nem sempre quer dividir, mas que garantiu que eu chegasse até aqui, amor, vá simbora. Que paciência é algo raro demais pra desperdiçar assim.

Carlota
07072013

sexta-feira, 7 de junho de 2013

De repente

Não precisa muito. Precisa apenas você. Aliás, preciso. Na justa distância do meu braço estendido pra, se eu quiser, estender meu braço a você. E nem precisa presente, nem presença. Precisa sim, a certeza absoluta de alguém a quem se vai amar pra sempre. Desse jeito que a gente escolheu pra amar.

Conversa mansa, olho bom, pele morna, beijo quente, abraço longo. Saudade se esvai quando eles surgem. Na tarde linda, olhando o céu azulzinho, em meio a móveis turquesa – eita cor linda – parei um pouco de lhe ver para observar aquele pedacinho de plástico que caiu refletindo o sol. E brilhava, o danado. Tanto que me lembrou a última cena de Beleza Americana, quando uma sacola de supermercado dança ao vento, em um momento repleto de poesia.

E a gente faz literatura, arte, trela. A gente se revela, se esconde, se encontra. A gente é tudo quando a gente quer ou menos se espera. A gente é um jeito de amar. O da gente. Esse aí.

Há cafés, sandubas, saladas. Há uísques, cervejas, sucos, água. Há a sua imagem se recostando na cadeira, todo o tempo do mundo, só pra me ouvir. Ela está em minha retina agora. Prova de uma cumplicidade que faz aniversário amanhã. Ou em qualquer dia no qual a gente se veja. Porque a gente festeja.

E a reciprocidade de amar a vida, cada um ou em conjunto, é um pouco o que a gente é. Talvez seja o segredo de não haver o passar do tempo, sentido como se fosse perda. O passar do tempo só vai mostrando essa forma própria de viver. Seja lá o tempo que for.

Carlota

07062013

sábado, 13 de abril de 2013

Milkshake de tangerina

E aí você, que nunca se aventurou além do sorvete de flocos e o máximo de risco gastronômico que assumiu foi tomar o chicabon apesar de todas as recomendações sobre as calorias e o colesterol, não sabe a delícia de um milkshake de tangerina.  É preciso contar sobre a pessoa que resolveu investigar esse sabor. Ela costumava misturar almôndegas com geleia de framboesa quando morava em outro país. Também tem o hábito de mesclar doce e salgado sem frescura nenhuma. E sem forçar ninguém a nada.

Daí que o milkshake, para quem já adora frozen de tangerina e na praia costuma consumir raspa-raspa (livrai-me-de-pensar-por-onde-vai-a-mão-que-raspa-o-gelo) de morango e coco, não pareceu algo tão escatológico quanto um sorvete de macaíba, por exemplo.

O inusitado começou quando aceitei o convite para um rodízio de sushi. Você pode estar com água na boca ou com o estômago revirado, confesso logo que se fosse uma pizza de pepperoni tinha ficado mais animada. Qualquer rodízio me deixa em desvantagem. Não consigo comer muito e aquela exuberância de comida passando o tempo todo termina me perturbando visualmente a ponto de ficar inapetente.

Encontro Pedro Bezerra, o sensato rapaz que fez aniversário há 13 dias. Encontro Juliana, amiga de Pedro, que um dia dividiu uma garagem e aulas de desenho comigo, me matando de inveja com seus mangás maravilhosos. Encontro Vitor, irmão de Pedro, também um amplo distribuidor de abraços e consumidor de sorvetes e sushis. Tive de ouvir ser eu uma farsa. Quem conhece Pedro lhe conhece também a expressão. Explico: fui logo dizendo que só ia consumir coisas cozidas, sushis maçaricados, apelando para a neutralidade de sabores. E aí terminei colocando no prato salmão, alga, peixe, uns empanados e vamos comer!

A gente estranhou sim, mas foram as duas telas exibindo MMA, logo acima do balcão de comidinhas. Os caras suados, se atracando, a gente sem ouvir nada, e de repente Ju vai de narradora: “amigo, me dá aqui um abraço!” O cara escorrega e ela fala: “pô, cara, cosquinha não vale”. E depois a sede avassaladora. E a gente olhando sem acreditar o preço de um copo de 330 ml de suco: R$ 5,00. Mas o danado era de tangerina. E foi dando ideia. Na recusa em consumir qualquer bebida, vai todo mundo pra sorveteria.

No caminho, Ju assusta um pobre ciclista, tem de escutar Pedro dizer que ela sim, assustou o ciclista e a gentil menina que se dispôs a dar carona até a John's da Madalena nem água quis. Vitor foi no casquinho com duas bolas de sorvete de morango – Ju estranhou a escolha. E garantiu: aposto que vocês serão as primeiras pessoas a pedir um milkshake de tangerina. Perguntamos. E a atendente responde: a mim, foi a primeira vez.

Dividimos um de meio litro com calda de morango. Pedro queria caramelo, eu disse que ia morrer de enjoo. Ele se rendeu – é tudo fruta, combina. E a gente senta com dois canudinhos e fica dividindo aquele pedacinho de céu. Doce, azedo, leve, quase um frozen mesmo. E ele corria a beber e eu enrolada naquela divisão.

E nessa história Vitor nos explica sobre o porquê de um bairro recifense se chamar Bomba do Hemetério (tinha um cara com uma bomba que garantia água para os moradores do lugar). Eu expliquei o porquê do nome Chão de Estrelas (uma comunidade de lavadeiras que estendiam roupas e lençois nos varais e, com a luz da lua, as sombras se projetavam por entre as peças formando desenhos no chão, parecendo estrelas). E a gente ficou assim, achando bonito isso tudo.

E enquanto o sorvete durava, apareceu até Bauhaus. Com espaço pra gente dizer que menos não é mais de jeito nenhum. Que um pequeno detalhe, um ornamento, algo inusitado, pode deixar um objeto mais belo, uma casa mais bonita. “Isso tem amor”, diz Pedro. Como a mistura doce-azeda abrandando o calor do sábado em Recife.

Carlota
13042013

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Lágrimas que pesam toneladas


Aos 43 anos, com três filhos, quatro afilhados, irmã, tios, tia, prima, um ex-marido, amigos bem próximos, outros afastados, afetos clandestinos, declarados, compadres e comadres, sinto falta de várias coisas, pessoas, sentidos.

Sinto falta do café da manhã cedíssimo, compartilhado com o ex-marido durante anos. Primeiro, para esticar a convivência pela manhã. Depois, para preservar os necessários momentos entre nós dois após os nossos três rebentos invadirem todos os espaços da casa.

Sinto falta de minha avó, de seus conselhos, da forma como me olhava sabendo muito. Do jeito que me ensinou a cozinhar, quase sem falar, apenas me deixando na cozinha a observar o modo como preparava a comida. Até hoje não tenho nenhuma sofisticação no dia-a-dia. É feijão, arroz, macarronada, bolos, pudins, fatias paridas, macaxeira, cuscuz, escondidinho, no máximo arrumadinho e feijoada. Aprendi com ela, exceção da última, ensinada no mínimo por três pessoas diferentes. Sim, arrisco outros pratos, receitas de livros e internet, com bons resultados. Mas eles não me foram ensinados. Não tem esse gostinho bom de vó.

Sinto falta de almas leves. Com muitos sorrisos e olhos brilhantes. De confiança mútua, desejo de mudar, segurança nas escolhas. Sinto falta de algumas amigas de riso solto e escancarado. De aprender flamenco por três meses. De viagens prolongadas. Sinto falta da cumplicidade de um palhaço alegre, companheiro de sonhos e que, ontem, provocou da minha querida afilhada Bruna a declaração que dá título a esta crônica: tem lágrima que cai pesando uma tonelada.  Sim, menina. As lágrimas pesam e são enxurrada quando a perda aperta e dá um nó.

Hoje caminhei por uma rua tranquila, lembrando da forma como você falou de saudade. Uma foto e um comentário. E me deparei com o rosto amado do nosso tio Ricardo. Cúmplice, amigo, irmão. Compadre, éramos ambos seus padrinhos. E completamente derretidos pela caçula (a última da família tinha sido eu, imagina você como fazia tempo).

Você nem sabe, mas a gente inventou de tirar fotos suas no mesmo dia. Quando fui por o filme na máquina, quase queimo o que ele já tinha colocado. E você estava linda. Gorduchinha, risonha, babando o berço, tão cheia de dobrinhas e de molecagem, que a gente se rendeu a esse aquecimento cardíaco chamado amor. Presente em cada imagem registrada naquele dia. E em outros, minha querida.

Lembrava dele e me alegrava por não sentir a perda como antes. Então pensei no quanto a gente tem de se habituar às despedidas que a vida traz. Às ausências de quem não está por perto para acompanhar saltos arriscados ou passos miúdos. Durante um tempo meu riso foi embaçado por essas lágrimas pesadas. Até o dia de ver um dia nublado e não mais ficar triste. Porque a lembrança tornou-se leve. A presença impregnou minha alma. Já não faço mais distinção. Para mim ele é, está, sou eu.

Ricardo foi o afeto canceriano ligado à família e aos dramas e comédias de todos nós. Hoje deixo ele partir. Com leveza.  São 14 anos de ausência. E fomos crescendo nesse tempo: eu, você, meus filhos.  Sabendo que os cafés da manhã podem ainda ser partilhados. Que os traços ancestrais de minha avó estão na paciência e na impaciência minha de todo dia. Que as pessoas precisam ir, ao morrer, ou porque tem outros projetos, amores, ideias. Que tio Ricardo, afeto meu, está em todo sonho, conquista, sorriso ou palhaçada. E em meu coração. Como você, minha flor primeira.

Carlota 
03042013 

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Os homens, essa raça perdida


Comento com amigas sobre um affair recente. E, a exemplo de receita de bolo em que cada um tem a sua, duas se põe a me dar conselhos amorosos para preservar a conquista, estimular uma nova aproximação, convidar para o cinema. Sim, minha gente, na insegurança de encarar uma novidade promissora, haja conselho pra não assustar o cara de quem a gente, simplesmente, ficou a fim.

Por favor, SMS sem muita paixonite, uma coisa tranquila, tipo assim, vamos ao cinema? E se a gente quase esquece a criatura e a pessoa inventa de ligar quando todo mundo está almoçando num mercado, curtindo um domingo pra lá de bom, a cara e o sorriso denunciam: a gente adorou. E não teve SMS não!

Deixa que ele liga. E lá vou eu, será? E foi nesse ínterim que surgiu o comentário: sabe lá, pra não assustar essa raça perdida. Pois é. Que triste! Porque podia sim ser só “que feliz!”. Século 21 e eu tendo de usar subterfúgios pra não assustar marmanjo? Ai que chato, que saco! Assustar com o quê, cara pálida?

Se os dois estão a fim, pra que esperar a intervenção divina, a invenção humana, um momento em que as operadoras de celular finalmente colaboram e permitem a comunicação? Taí uma analogia pra outra crônica: uma operadora que simplesmente implica com a outra e impossibilita qualquer mensagem, qualquer ligação, contato verbal.

De boa, fico relembrando as crônicas de Xico Sá, quando ele fala da atual covardia masculina para assumir ficar ao lado de uma mulher inteira, bonita, resolvida, alegre, bem sucedida. E aí que com a indecisão do macho escorregadio, do cara que não liga no dia seguinte, que esquece a gentileza, haja solidão. Quando se poderia, se quisesse, curtir o que fosse, por uma noite, por dias seguidos, sem pressão.

Porque nem toda mulher quer compromisso. Pode se querer uma companhia para sexo bom ou cinema. Praia, futebol, café. Sei lá. Se meu mundo já está estruturado, não é agora que eu vou mexer em tudo. Mas se o cara quiser chegar junto, talvez surja um novo. E então?

E após conselhos, emails, ligações, SMS, encontros e desencontros, admito: não sei jogar. Não consigo fingir desinteresse se estou interessada. Não disfarço fomes, quando elas persistem. Não deixo de lado possibilidades. E se os homens são uma raça perdida, não sei. Generalizações terminam virando erros de julgamento. Como dessa vez em que encontrei olhos da cor do mar em dia de céu nublado num olhar de perdição. E me encontrei. Aliás, nos encontramos, minha criatura perdida.

Carlota
23022013

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Um amor, esse Carnaval

E quem se prepara quando se depara com um amor de carnaval? Será que vem, fica, vai?

Com beijo que derrete a alma junto, com abraço que esquenta mais que sol de meio-dia em plena ladeira de Olinda, ali nos quatro cantos do mundo onde a gente se encontrou, mas já era quase cinco, tem calor maior não. 

E com pirata de olho pintado, colombina de olho pintado, ela Náutico, ele Santa Cruz? Olho escuro, olho claro, pele negra, pele clara, libra e libra, galo, dragão, pedestre, motociclista, cerveja, cinema e folia no pacote do em comum.

 E se consultam os búzios, i ching, tarô, horóscopo chinês quando as operadoras entram em pane e se entra em pânico com o desencontro. Então se reconhecem em outras fantasias e se encontram quando nem se esperava mais. E no que o tempo vai embora, quando nem se consegue mais pular o Vassourinhas e a multidão vira borrão, eles se vão. E o que eram três dias, são isso, três dias.

E ninguém se prepara quando se depara com um amor de carnaval. Ninguém avisou que o sábado que amanheceu de preguiça e quase que nem se vai pras ladeiras ia chegar com sol e alegria. E esse beijo, vige Maria!

Carlota
13022013

domingo, 27 de janeiro de 2013

De casa e apego


De repente indo ao supermercado me deu uma saudade danada de casa. Sabe aquela coisa de curtir ficar descalça e sentir o chão frio? De olhar a cozinha espaçosa, a janela que dá para o quintal, a outra que dá para o jardim, que tem um jasmineiro que mexe com minhas memórias, que me acalma e dá alento, brinda a noite quando decido ir olhar a lua e só?

De repente, assim, indo ao supermercado, 11 da manhã, caminhada curta e calorenta, mas lembrei disso tudinho e foi me dando essa saudade, essa vontade de não sair daqui. Por mais que eu queira muito voltar à minha cidade natal, ficar mais perto dos amigos e do trabalho e dos filhos, almoçar em casa, caminhar na praça, na beira do rio, ter aulas de aquarela, sair caminhando pela cidade, aconteceu de sentir esse apego.

Talvez por ter comprado a casa sozinha. Por ter visto os filhos crescerem nesses sete anos, por ter aprendido a resolver outros problemas e enfrentar alguns vazios. Talvez por todas as caminhadas na praia, pela voragem de querer correr quando a mente precisava esvaziar-se, talvez porque eu gosto tanto de mar, do cheiro, da brisa que há por aqui. E de ver aquele casal antigo na calçada e ouvir bom dia e perscrutar o jardim deles admirando uma acácia amarela e ter medo quando vejo apenas um.

De repente lembrei de quando aprendi a fazer feijoada, cada um que me entregasse uma receita mais elaborada e eu, cozinheira desconfiada, resolvi por todos os ingredientes dos quais eu mesma mais gostava. E assim, sem previsão, chegaram amigos tão queridos, com mães e filhos, e aquele caldeirão imenso foi a medida certa para a nossa fome. E os elogios, de tanto prazer e vontade de repetir, chegaram dizendo que realmente a feijoada dera certo. Pois então, não atraiu amigos para um encontro inesperado?

E o vento, danado, quando empurrava as janelas e assustava o filho mais velho? E os bichinhos que foram chegando (uma jabuti, uma dachshund ) e outros indo embora (minha boxer fugitiva, um border collie que morreu), meus vizinhos gentis, um que também faleceu. E o acolhimento e a sorte de sempre ter gente boa no entorno de minha casa. E dentro dela.

Nasceu assim, de repente, hoje, 11 horas, na caminhada curta e calorenta de casa ao supermercado, uma saudade insana, quase esganada, cortando devagarinho a necessidade de ir. Apego ao jeito de olhar um mundo conhecido, que aprendi a amar aos poucos porque em muito me lembrava o bairro onde morei por tantos anos. Aqui, outra cidade, mas vai ver eram os muros, as casas, as cadeiras, as gentes todas que nem sempre conheci.

E de repente descobri amar os pedaços que se juntam em forma de portas, janelas, espaços. Com o coração apertado e querendo muito, muito, toda a sorte e amor do mundo na procura e encontro por meu novo lar. Para onde irei arrastar livros, filhos, afetos. Onde bolos de laranja e café serão mais frequentes, assim como as conversas e uma janela específica, de onde eu possa ver uma mangueira, trazendo um pouco da antiga casa para mim.

Carlota
270113

domingo, 6 de janeiro de 2013

Encontro


Toda casa deveria ter alpendre, todo apartamento, varanda. Todo quarto, jardineira. Toda alma vez em quando um sobressalto, susto, espasmo.

Toda casa deveria ter um dono que nela habitasse e lhe deixasse marcas. Livros, uma manta sobre o sofá, almofadas, água. Pratos e talheres, algumas taças.

Há de se ter, também, um balanço em um cajueiro. E alguém que chegando pela primeira vez nele se balance. E um amigo, outro, que sem cerimônia lhe roube os frutos.

Uma casa deveria, pelo menos uma vez a cada ano, abrir as portas para os desconhecidos amigos do dono. Para eles e suas risadas, para as músicas, o vinho, cerveja, brindes, piadas.

Mulheres e homens de pernas de fora. Cães que se enroscam quase gatos, filhotes, buganvílias e flamboyants.

Toda casa deveria ser testemunha do riso, da prosa boa, de ostras ao coco, arrumadinho, bolos, doces e de uma amiga que traz para o convívio lírios de anjo. De afagos e afeto.

Casa, dono, amigos deveriam ser surpreendidos. Música vira presente, se torna parte, é carinho inesperado. E, do todo, se sabe: aquele que fez tem beijos musicados, invenções para dar amor em gesto
s.
Toda casa deveria ter um dono que cobrisse hóspedes de gentilezas em uma tarde saborosa de sábado. E, eu sei, pelo menos uma delas está em Vila Velha.

Para Alexandre, Dario e os doces companheiros do sábado, 15.12.