sexta-feira, 1 de abril de 2011

Intervalo e 3 atos (Dor)

Comecei a caminhar devagar pelas ruas. Quase tateio a calçada com meus pés. Se vou à praia o cuidado é com o terreno arenoso. Se no campo, com as folhas derramadas de tantas árvores. Sigo lenta, buscando o equilíbrio, sentindo a firmeza ou encontrando antecipadamente aquele espaço vazio onde posso resvalar e cair.

Uma torção no pé direito me obriga a isso, a um excessivo cuidado com a forma como piso. A uma extrema consciência do entorno, não apenas feito ele de concreto e coisas, mas de pessoas que me olham e enxergam alguém que segue devagar. E observa.
Nessa fase, de começar lentamente porque não há como ir rápido, pelo menos por enquanto, estou retomando meus diálogos impossíveis. As longas conversas que eram pródigas quando caminhava com velocidade na beira-mar. Cerca de 50 minutos de reflexão em quatro quilômetros de calor e convivência pacífica com outras pessoas, nem sempre comigo.

Primeiro a desilusão com minhas férias. Dez dias com o pé imobilizado me obrigou a deixar as tarefas domésticas de lado, os planos de fazer pratos deliciosos para a família, as ruidosas saídas com minhas amigas, a dança a qual me entrego quando estou feliz. Foram dias em casa, ouvindo as conversas miúdas de meus filhos, suas brincadeiras, de ver a bagunça e tentar dar um jeito quando o pé melhorava.

Mas a dor me aguardava. Intensa, feroz, incômoda. Dessa vez, no ombro direito. Parecia apenas que eu havia dormido de mau jeito. Não. Meu corpo avisava da necessidade de parar. Parar totalmente. Não olhar email, não encostar no computador, não encadernar blocos, projetar layouts, aceitar convites de trabalho.

Não escrever. Como doeu tudo isso. Sentir-me incapaz, impotente e, ainda, sofrendo uma dor tão atroz que não conseguia dormir. Que me incapacitou temporariamente para qualquer raciocínio lógico. Que me fazia chorar silenciosamente porque um grito me tiraria o fôlego. Que me deixou dependente de minhas crianças e amigos.

A dor provocou mais. Me fez perceber o que todos que sofrem uma dor aguda observam. A desimportância de inúmeras coisas, ínfimas essas coisas, pequenas, quase manias. Perdi a vontade de reclamar da bagunça que as crianças naturalmente fazem. Elas, em suas brincadeiras, me deixavam descansar. Olhavam preocupadas as minhas lágrimas e me ajudavam no que era possível: vestir, pentear, arrumar minha cama. Meu filho mais velho me surpreendeu com sua delicadeza ao desembaraçar meus cachos. A mão suaveconduzia o pente com imenso cuidado, com medo de machucar.

Entreguei-me à generosidade desses cuidados, no aprendizado de aceitar ser cuidada. De também receber atenção. Minha amiga se dispunha a sair do trabalho para me levar às sessões de acupuntura. De me levar em casa quando a noite chegava. Meu ex-marido me surpreendeu lavando os pratos de dois dias, arrumando minha casa, fazendo compras, incentivando a quietude entre nossos filhos. Deu-me a atenção necessária para que eu me sentisse melhor. Em meio à dor, aprender a receber sem reciprocidade, apenas sendo grata, me fez refletir ainda mais.

Assim como o tratamento. No percurso inteiro, médicos, amigos, fisioterapeuta, acupunturista se revelaram pessoas extremamente gentis. E como, em um processo de dor aguda, é preciso gentileza. Aquele traço de humanidade que indica respeito pela dor alheia.

A acupuntura trouxe ganhos inesperados. As longas conversas que mantinha comigo enquanto era obrigada a ficar mais de 20 minutos imóvel, com o corpo permeado de finíssimas agulhas. De início apenas dor. Depois gratidão. No final, encontro. Encontrei a mim mesma naquelas 11 sessões. Era uma imersão em minha alma, me livrando de pesos que não precisavam estar.

Intervalo e 3 atos (Morte)

Minha sogra morreu no dia 14 de fevereiro, quase dez anos após a morte do meu sogro. Sofria no hospital com dores, inchaços, escaras. Sofria daquela vontade de ir embora e se livrar de um corpo que já não lhe pertencia. Fui visitá-la apenas uma vez, após uma das sessões de acupuntura em que me senti tão cheia de amor, que precisava extravasá-lo em carinho e palavras amenas.

Quando a encontrei agradeci por tudo o que me deu. Toquei suavemente seu rosto, toquei, toquei, dizendo como gostava dela. E ela disse-me: “Você não sabe como isso é um conforto”. Resgatei o que sentia por ela quando nos conhecemos, quando ela me amparou após o meu primeiro filho, sem lembrar dos atritos que me afastaram de sua casa, a qual só visitava quando era seu aniversário. Só quis dizer, tocando o seu rosto,que estava ali e queria por alguns instantes amenizar a sua dor.

Não fui ao velório. Cheguei em cima da hora para o enterro, ainda com medo de encontrar a atual esposa de meu ex-marido. Não seria uma ocasião interessante para trocar palavras, nós que já nos encontramos outras vezes. Nenhum com a família dele presente. Como seria assumir o posto de ex e ver a nova mulher receber os pêsames junto à família? Sabia que iria me sentir constrangida. Mas ela não foi. E terminou que eu recebi o carinho de gente que não me via há muito, muito tempo.

Meu ex-marido desamparado. A morte faz isso, dos pais principalmente. Fiquei ao seu lado, caminhando abraçada. Perguntei se precisava de algo, avisei estar disponível para conversar. Lembrei da visita ao hospital e falei sobre isso, sobre ter me despedido dela. Enredei-me em tristeza, na constatação do envelhecimento, da irreversibilidade da vida. Não gosto de despedidas.

Intervalo e 3 atos (Verdade)

É que um dia pensei em resgatar algo. E me envolvi com alguém por quem fui muito apaixonada.Como se concretizar a paixão fizesse voltar o tempo. Ou melhor, o sentimento mútuo. Talvez por isso a gente se encontrasse. Até constatar o óbvio. O que sentimos não volta. E ler a verdade em um de seus emails me fez perder a vontade de estar. Decisão tomada, aceitar as coisas, seguir com leveza. Para combinar, me vesti de palhaça dois dias no Carnaval. Não o clown melancólico, mas o pândego que se
espalha em sorrisos, dança e brinca alegremente. Sem máscaras, apenas os olhos pintados. Pra realçar a vida que trago em mim.