O que me salvou foi o seu gingado, moço. Esse jeito de andar
na minha frente, com sua farda de serviços gerais e uma malemolência que dizia:
relaxa, a vida pode ser incrível. E eu, que estava na vibe do vou ali e não
quero mais voltar, me rendi ao inesperado encontro com o molejo desse cara
que, hoje, resolveu andar na minha frente e sem perceber me contou da alegria, nesse lance de desapegar de tanto problema que
aparece, de tanta tarefa, tanto prazo, tanto calor e putaquepariu tá chegando o
carnaval e pra onde eu vou?
Na verdade o texto versa sobre a construção do afeto. Essa
necessidade que, acredito, todos nós compartilhamos, de amar, de se sentir
querido, de vez ou outra dividir a vida, seja a alegria predominante ou umas
tristezas de leve a chegar independentes do sol, do mar ou da brisa que faça.
Afeto é construção, penso aqui comigo. É aquele lance da
convivência apontando coisas legais, similaridades, disparidades
totais, visões de mundo que não chegam nem perto da sua. E se for família, ah,
nêgo, nêga, é pra lascar. Como explicar pra esse mundo de gente que a gente é
um mundo e cada um é também? Como garantir o encantamento com três filhos na
pré-adolescência com todos os benefícios e ônus que chegam junto? Como
justificar a necessidade de silêncio, colo ou compreensão para um povo que lhe conhece há 45 anos?
Construção. Eita coisinha difícil a convivência. O
distanciamento. A pausa. A vontade de dizer hoje não, peloamordedeus, só me
dê afago e tranquilidade e almas benfazejas e alegrias e cumplicidade e
sorrisos e abraços e um dengo assim derramado bem juntinho de sua janela que
cheira a jasmim.
Como dizer que uma vida inteira pode passar e a necessidade
continua? Como entender o hábito de esperar ser o centro das atenções e, depois
de milhares de anos luz e análises microscópicas, perceber que não vai dar
mais? Como ser explícita o suficiente para dizer que por favor não se atreva a
podar as minhas árvores, porque aí eu viro bicho e quando entra o afeto filial,
primordial, aí a pessoa endoida de vez?
Talvez se a gente entendesse que é preciso se desarmar o
suficiente para saber que o processo é recíproco. Que se eu sinto, você provavelmente também pode estar passando por isso. Alteridade. O outro. O
desejo do outro. O medo do outro. A dor do outro. A alegria também. E essa
vontade de viver bem muito, bem feliz e distribuir afeto de monte, de sempre,
sempre, sempre, sempre.
Há também quem nos dá amizade mas no final das contas
cobra presença e sente ciúmes. Sou um absurdo, um abuso de ciúmes. Mas faço cara de
paisagem disfarçando o sem número de anos que passei sendo a menina mais doce,
mais amena, menos trabalhada da história. E se alguém se ressente hoje e se me
afasto, ô pai, colabora aí para que eu não precise escutar tanto e tanta coisa.
Porque afeto não se cobra, não se paga, se constrói.
Junto a pai, mãe, filho, filha. Junto ao amigo para o qual
você estende os braços ou só os pensamentos. E o querer bem. Porque afeto é
algo que não chega assim de repente. Ele pede conhecimento. Presença inicial.
Verdades, histórias, memórias, partilha. E se se esquece o que foi vivido, por que
mágoa, por que dor, por que tanta cobrança, peloamor?
E aquele cara que no meio do meu dia de trabalho achou de caminhar
na minha frente salvou meu dia inteiro. Porque desanuviou a cabeça pesada. Porque me lembrou que é muito, muito melhor seguir mais leve. Com
gingado, malemolência e, digo logo, esperando pra daqui a pouco o carnaval.
Carlota
04022014