quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A construção do afeto

O que me salvou foi o seu gingado, moço. Esse jeito de andar na minha frente, com sua farda de serviços gerais e uma malemolência que dizia: relaxa, a vida pode ser incrível. E eu, que estava na vibe do vou ali e não quero mais voltar, me rendi ao inesperado encontro com o molejo desse cara que, hoje, resolveu andar na minha frente e sem perceber me contou da alegria, nesse lance de desapegar de tanto problema que aparece, de tanta tarefa, tanto prazo, tanto calor e putaquepariu tá chegando o carnaval e pra onde eu vou?

Na verdade o texto versa sobre a construção do afeto. Essa necessidade que, acredito, todos nós compartilhamos, de amar, de se sentir querido, de vez ou outra dividir a vida, seja a alegria predominante ou umas tristezas de leve a chegar independentes do sol, do mar ou da brisa que faça.

Afeto é construção, penso aqui comigo. É aquele lance da convivência apontando coisas legais, similaridades, disparidades totais, visões de mundo que não chegam nem perto da sua. E se for família, ah, nêgo, nêga, é pra lascar. Como explicar pra esse mundo de gente que a gente é um mundo e cada um é também? Como garantir o encantamento com três filhos na pré-adolescência com todos os benefícios e ônus que chegam junto? Como justificar a necessidade de silêncio, colo ou compreensão para um povo que lhe conhece há 45 anos?

Construção. Eita coisinha difícil a convivência. O distanciamento. A pausa. A vontade de dizer hoje não, peloamordedeus, só me dê afago e tranquilidade e almas benfazejas e alegrias e cumplicidade e sorrisos e abraços e um dengo assim derramado bem juntinho de sua janela que cheira a jasmim.

Como dizer que uma vida inteira pode passar e a necessidade continua? Como entender o hábito de esperar ser o centro das atenções e, depois de milhares de anos luz e análises microscópicas, perceber que não vai dar mais? Como ser explícita o suficiente para dizer que por favor não se atreva a podar as minhas árvores, porque aí eu viro bicho e quando entra o afeto filial, primordial, aí a pessoa endoida de vez?

Talvez se a gente entendesse que é preciso se desarmar o suficiente para saber que o processo é recíproco. Que se eu sinto, você provavelmente também pode estar passando por isso. Alteridade. O outro. O desejo do outro. O medo do outro. A dor do outro. A alegria também. E essa vontade de viver bem muito, bem feliz e distribuir afeto de monte, de sempre, sempre, sempre, sempre.

Há também quem nos dá amizade mas no final das contas cobra presença e sente ciúmes. Sou um absurdo, um abuso de ciúmes. Mas faço cara de paisagem disfarçando o sem número de anos que passei sendo a menina mais doce, mais amena, menos trabalhada da história. E se alguém se ressente hoje e se me afasto, ô pai, colabora aí para que eu não precise escutar tanto e tanta coisa. Porque afeto não se cobra, não se paga, se constrói.

Junto a pai, mãe, filho, filha. Junto ao amigo para o qual você estende os braços ou só os pensamentos. E o querer bem. Porque afeto é algo que não chega assim de repente. Ele pede conhecimento. Presença inicial. Verdades, histórias, memórias, partilha. E se se esquece o que foi vivido, por que mágoa, por que dor, por que tanta cobrança, peloamor?

E aquele cara que no meio do meu dia de trabalho achou de caminhar na minha frente salvou meu dia inteiro. Porque desanuviou a cabeça pesada. Porque me lembrou que é muito, muito melhor seguir mais leve. Com gingado, malemolência e, digo logo, esperando pra daqui a pouco o carnaval.

Carlota

04022014