quarta-feira, 17 de março de 2010

Tempo de luto

Deveria chorar sobre o corpo, mas havia gente demais ao seu redor. Perguntas e excesso de palavras, semelhantes a um enxame de pequenos mosquitos que incomodassem seu rosto, fazendo-a piscar repetidamente. Suspirou. Olhou novamente, acomodando suas mãos ao rosto dele, separando as flores, um último afago em seus cabelos.

Saiu da sala, deixando-o com sua família, amigos. Subiu as escadas sem tropeçar em nenhum degrau, tamanha a força com a qual segurava o corrimão. Num piscar de olhos lembrou da luz atravessando o vitral amarelo e a manhã sorridente em que fora ao seu encontro voando por ali, parando apenas nos seus braços. Um soluço. Não teria naquela casa um filho para lembrar-lhe dele. Remexeu-se agoniada, como a expulsar o sonho de si. Não queria pensar nisso agora. Devia refazer a vida, mudar-se da casa. Esquecer a dor. Não senti-la hoje. Não pensar nela amanhã. Mais tarde, mais forte, decidiria o que fazer.

Três anos após aquela tarde ainda não conseguira vencer o entorpecimento de tê-lo perdido. Acordava à noite procurando o seu braço. Negava a qualquer outro esse aconchego. Andando na sala olhou o vitral. A intensidade do amarelo provocava, agora, tontura. Foi quando uma pedra rompeu o vidro, despedaçando-o. Uma lasca quase atingiu seu rosto e a fez gritar de susto. O sol agora entrava sem filtros, invadindo de luz a sala. Espantada, tentou recolher os cacos, antes procurando ver quem havia atirado a pedra. Foi até a porta, saiu para o jardim, não havia ninguém.

Ficara encantada por aquela casa, o jardim e, sobretudo, pelo vitral antigo. Caiu em prantos. Relembrou detalhes de sua vida com Afonso e no quanto haviam sido felizes. As manhãs com café, as ligações durante o dia, chegada a noite, falar do trabalho e fazer planos. Chorou como uma criança, abraçada aos joelhos, balançando para frente e para trás. Não percebeu a manhã se esvaindo, os vidros espalhados. Só dizia: meu amor, meu amor.

Já escuro sentiu o coração vazio. Três anos e só hoje conseguira chorar a morte dele. Afonso, o que lhe arrancava gargalhadas inesperadas com frases que a desarmavam. Decidiu ter dele essas lembranças queridas e deixá-lo partir. Ficou quieta observando o próprio coração. Um bem-vindo cansaço a refrescava, como o vento frio que entrava por entre os vidros quebrados. Seu luto durara três anos de emoções represadas. E o corpo se ressentia dessa dureza de alma.

Não podia fazer voltar o tempo. Poderia viver de novo. Cuidadosamente, para não se cortar, tirou os restos do vitral. Comprou uma janela e deixou o sol entrar.

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