domingo, 22 de agosto de 2010

Um jardim

Havia entre nós, eu e meu filho caçula, uma pequena disputa, deliciosa e cúmplice porque de nós dois apenas. Era um afagar mútuo, no qual cada um dizia do amor em si feito em palavras quase repetidas: meu biscoitinho/ minha biscoitinha/ meu anjinho/ minha anjinha/ meu querido/ minha querida...

E nos enredávamos nessa conversinha mansa, tão suave e agradável, porque vinda de um menino cacheadinho e de olhos doces. Um dia, nesse tempo, ele ganhou a disputa. Falávamos de flores, folhas, nos dávamos nomes de árvores, até que ele me encarou e disse: meu jardim! E ali declarei-me rendida: você ganhou!

Na percepção que escolhi ter na vida, o jardim é a melhor parte de nós. Aquela parte da alma que não deixamos secar. Onde cultivamos uma terra inteira de afetos, que crescem perenes, mesmo quando se vão. Não foi à toa que escolhi comprar uma casa e, ao encarar o jardim tomado por brita, pedi aos meus amigos, como presente de casa nova, não uma cuscuzeira ou toalha de pratos. Pedi uma muda de alguma planta, para que os tivesse perto de mim.

Uma tarde toda levei plantando hixórias, pingos de ouro, buchinho, um flamboyant (depois transplantado para a casa de um colega de trabalho em Itamaracá). Sim, e jasmins, porque eles serenam minha mente cansada, quando deles sinto o cheiro pela janela. E porque tenho deles a lembrança de infância na casa de minha avó paterna (Não que tivéssemos muito contato e nem que esses fossem sempre agradáveis. Mas sua casa, a entrada perfumada de jasmins, me abrandava).`

Quando na universidade, tínhamos nesta um jardim com um lindo gramado. Dos que convidavam a tardes lânguidas, seguidas de conversas intermináveis sobre sonhos e o dia a dia das aulas. Era com tristeza que víamos o espaço encerrado em si mesmo, rodeado por grades que nada diziam, ou melhor, falavam dessa vida presa. Eu preferia então ir à entrada da biblioteca observar os peixes, sentindo uma espécie de cansaço nesses intervalos.

Voltei a essa mesma universidade para ensinar. Meus mestres tornaram-se amigos. Outras pessoas, que não conhecia, chegaram pertinho e foram ganhando espaço nos meus dias. Quase dez anos depois, o jardim perdeu as grades, ganhou vida, tornou-se espaço para abraços, reflexões, trabalho. Para a pausa que precisamos quando ainda não é tempo de voltar para casa. Convida-nos com seus pequenos animais livres, seus bancos e sombras, a jogar conversa fora, a abrir os olhos para as folhas de uma árvore, para um rapaz tocando violão, ou aquele grupo discutindo, quem sabe, filosofia?

Um aluno um dia me disse: a universidade nos empurra para casa, nada nos convida a estar aqui após as aulas (ainda vivíamos com grades, infelizmente). Lembro dele quando vejo este jardim. Porque há um sentido de permanência, de convivência, hoje, nesse lugar. O extenso gramado ganhou lajotas a indicar caminhos ladeados por arbustos. A vida dos que passam por aqui parece estar um pouco mais leve, talvez arejada por ganhar esse espaço. Que ele seja, e não apenas ele, uma parte do que temos de melhor. Este jardim.

Carlota
22082010