sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Asfalto


Gosto das cúpulas das igrejas e da cumeeira das casas. Eu gosto quando o carro corre e o entorno vira um borrão. Não suporto engarrafamentos.

Gosto de árvores frondosas, bebidas quentes e geladas, céu azul. O banco do carro e o friozinho do ar condicionado. O amarelo do gelo baiano.

Sinto medo ao cruzar a faixa de pedestres. Gosto de retornos. Óculos escuros, uma camada de batom. Sandálias, saias, blusas. Sol.

Pensar olhando a janela, ouvindo Vanessa da Mata. Pode ser, sim.

De sentir saudade apenas quando sei que vai embora. E dançar. Com você.

Me assusto com amigos sendo vítimas de assalto. Tenho sonhos. E sobressaltos.

Gosto de festejar aniversários e dos que fazem festa. Observar detalhes em frestas e janelas. Desenhos em paredes. Muros caiados à distância. Jardins. E de quando os meus sorriem.

Bolo quentinho, abraço, brindes. Pilhas de livros. Lençois. Cheiro de maresia. Olhar – e não subir – escadarias.

Tardes, cinema. Beijo, sotaques, gargalhadas. E essa viagem.

Carlota
301112

sábado, 10 de novembro de 2012

De alegria, felicidade e outras coisas boas


A vitrine de aniversário da loja que eu tenho em sociedade com duas amigas tem esse mote. Três anos de perrengue, beleza, cumplicidade, sonho. O mote surgiu ao ver um cartaz no pinterest “Be happy”,  ser feliz. Muito além de qualquer cobrança, fiquei pensando nessa coisa de querer dividir o que é bom. Da alegria, da felicidade, das coisas boas que nos acontecem aos montes e a gente nem percebe. Daquele cara que deu um sorriso encantador e levou seu ego para as alturas. Daquele dia em que tudo deu certo. Da decisão tomada e do alívio que ela provocou. Do fato de encontrar seus filhos ocupadíssimos lendo naquela livraria enquanto você tinha de resolver um problema logo após o cinema. E a vontade e a declaração expressa em seguida: vocês são lindos. Porque souberam esperar, porque estavam embevecidos, mergulhados na leitura. E como é lindo perceber que eles se envolvem nisso tanto quanto você.

Hoje não falarei de dores, tristezas, mazelas, corpo e cansaço. Hoje digo: quero alegria. Quero fazer o brinde e ver a amiga dizer, ao invés de saúde, saudade. Porque os encontros hoje são raros. Muito mais porque o trabalho me toma os horários do happy hour. Mas não é que hoje deu? No mesmo dia em que faço uma vitrine e declaro meu amor completo à festa, à alegria, às inúmeras coisas boas que ainda existem por aí. Bate papo, por exemplo. Dançar. Poesia. Música. Afeto. Encontro.

Sim, vamos celebrar. Abrir o sorriso mais escancarado. Esquecer que existem esquecimentos, dores, ausências. Vamos nos envolver com aqueles que nos querem bem. Não que eu esteja esquecendo as dores do mundo. Não. Mas é preciso também agradecer o fato de ter coisas boas acontecendo conosco. Não é insensato amar. Não é insensato declarar o amor e o envolvimento. Não é insensato fazer escolhas.

Da alegria, felicidade e outras coisas boas posso dizer que são muitas. Que trazem rasgos de beleza, quebrando a rotina em pedacinhos, no fazer as unhas e pintá-las de vermelho, ou renda, ou verde perolado. É só um jeito de viver e de se encantar consigo. De cantar devagar a música que te deixa feliz. De dançar sozinha, acompanhada, flamenco, rodopios, ritmo. De pintar a boca de vermelho e dizer que hoje só você, só você pode ser a mais vibrante criatura. A mais alegre, feliz, intensa pessoa.

Rasga um pouco da mesmice, tira o vestido do armário, abre um sorriso. Porque existem as dores do mundo, as suas dores, e uma enormidade de diferenças, estranhezas e injustiças. Mas, hoje, dentro de você, tem felicidade, não se sabe bem por que. Ou se sabe, quem sabe? Vamos brindar à alegria, convocá-la para os dias, que de cinza se tornam ensolarados. Esse é meu dia, meu domingo, minha praia. Da alegria, felicidade, coisas boas, trago um ano inteiro de imagens, roteiros, amigos. Bora lá.

Carlota
10112012

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Dia das Crianças

Ontem à noite fui surpreendida por um pedido ainda no caminho para casa. Neguei. Nada de usar o tradutor do google para o texto solicitado pela professora de inglês. Espera eu chegar que a gente resolve. E lá vou eu explicar que não seria correto, porque o objetivo ali era aprender a criar um resumo e depois disso, a traduzir, observando um pouco as adaptações necessárias de um para o outro idioma. Isso garantiu-me uma certa cara feia do primogênito, além de uma noite de sono relativamente mais curta.

Primeiro a necessária dose de paciência para que ele vencesse a resistência em me contar a história do livro. “Muito besta, mãe”. Depois, para que ele não suprimisse um personagem só porque ele aparecia pouco. E, depois, saber do final e se ele tinha trazido alguma coisa, uma lição, uma forma de ver o mundo (se bem que eu acho que nem todo livro infantil precisa funcionar como uma fábula. Poderia simplesmente ter uma boa história). Consegui fazê-lo perceber a proposta do autor. E disse que era importante para fechar o resumo. Meu querido acata a sugestão e parte para a escrita.

Solidária, fiquei no sofá enquanto ele traduzia o resumo. Li uma Piauí quase toda, quase cochilei, quase desisti da companhia. Quando dei por mim, o bichinho tinha dormido apoiado na mesa e eu, mãe, agarrei o coração na mão e acordei, dizendo para ele terminar. No final, quando o ritmo já estava mais adiantado, colaborei dizendo umas palavrinhas. E ainda opinei se não dava para deixar o resumo um tantinho mais enxuto. Aliviados com o final da história, do resumo, da tradução, daquela noite para a qual tinha me proposto ver um filme e tomar uma taça de vinho, vamos os dois dormir. E escuto um “obrigado, mãe” que me fez ir até ele, conversar mais um pouquinho, amenizando o esforço que tínhamos feito em conjunto.

Nessa de me olhar no espelho enquanto ando pelo quarto, ele entra e a gente se esbarra. Percebo que meu filho mais velho, de quase 14 anos, está mais alto do que eu, que tenho 1,65m.  Coisa mais doida, essa. Ter um bebê no colo um dia desses e de repente ver o crescimento como algo de uma vez só, sem etapas (algumas a gente deixa passar). Quando é que aconteceu, hein? Naquela espreguiçada que a gente deu pela manhã? Na praia, enquanto eu andava e você dormia? Num domingo? De repente aquele menino está me obrigando a levantar os olhos para falar com ele. Não deixei a oportunidade passar. Puxei para junto de mim, dei um abraço daqueles laterais - para poder ver a diferença de tamanho em frente ao espelho - e ri um riso bom danado, com ele junto, cacheado, olhos grandes, afeto de quem está bebinho de sono mas dá uma colher de chá pra mãe.

Então eu, que tenho quatro afilhados e três filhos e no caçula percebo traços maiores da infância, decidi: vou curtir o 12 de outubro com leveza, brigadeiro, pipoca, abraços e um passeio caprichado. Aproveitar minhas crianças (a que eu tenho em mim também), cada fase, cada fala, cada forma de chegar, permanecer, mudar. Lembrando Marina há alguns anos: dá pra tu ser criança só um pouquinho mãe? Para o que respondi com o gesto de agarrar a imensa bola colorida e ir brincar com todos três naquele parque.  Feliz Dia das Crianças, queridos!

Carlota
11.10.12 

Ps.: Para Igor <3 p="p">

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

De abraços e aniversários

Em tempo de tanta virtualidade, recebi mensagens lindas, mostrando que os avisos de aniversário do facebook surtem efeito. E que, por alguns instantes, a gente para e escreve pra desejar um bom desejo ao aniversariante: dias legais, festinha, sorrisos, uma vida boa, parabéns, saúde, sucesso, beleza, projetos, tanta coisa e sempre tão boas... E se a gente dedicou esse tempinho aí pra desejar, é porque temos doses de afeto a distribuir, do mais simples parabéns até os textos mais elaborados, de quem se prolonga no desejar.

Decidi comemorar meu aniversário com três criaturas tremendamente especiais, meus filhos Igor, Marina, Ian. Em raras ocasiões acontece do aniversário ser em um sábado, então que saí do trabalho após aplicar provas e fomos juntos a um hotel pertinho, mas que nem parecia ser. Ficamos ilhados entre praia, piscina, restaurante. Em um quarto propício às nossas brincadeiras e à surpresa que eles me prepararam à noite, logo após o jantar. Dava para curtir a praia ouvindo eles próximos, brincando, festejando com alegria esse momento de cumplicidade com a mãe.

Mas na sexta-feira, 28, uma amiga linda e libriana também comemorava. E fui pra lá, dar meu abraço e esperar a meia-noite chegar, porque queria dividir o dia que começava com pessoas que me querem bem (e que podem esperar o avançado da hora pra festejar). O maior presente foram os abraços de Catarina, Antonio, e outros dos quais não sei o nome (perdoem, foram vários). Também o abraço coletivo: eu, Verônica, Gabriela. Três librianas juntinhas, desejando amor, sorte, dias amenos. Abraçando como se não desse mais pra se desvencilhar do aperto, do círculo fraterno que se formou . Sempre choro, sou a criatura mais besta do mundo pra alegria. Me despedi com todo amor possível me aquecendo a alma, feliz que só.

Para ser justa, preciso dizer que quem primeiro me abraçou foi Renata Victor, ainda no dia 28. Logo após, Niedja. Pedro Bezerra veio tomar um shake no Bogart me garantindo conversa, afeto e afagos. Minha comadre, Margarette Andrea, chegou à noite e antecipou a festa que acontecerá no próximo sábado, 6 de outubro, com todas e todos juntos – comadres, sócias, amigos, recém-casados que vão abrir a casa especialmente pra gente festejar. Durante mais uma prova, aparece Marcone para abraços e xeros. Também Xica e Wlaudimir, na secretaria, pouco antes de ir embora.

Na manhã do aniversário, primeiro Jeziel, depois Alfredo e fui sendo invadida por pequenas alegrias, essas, de todo dia, como ganhar abraço de pessoas queridas. Yanna, minha aluna, logo após a prova deseja feliz aniversário com abraço. Assim como Gil. Recebo mensagem de Laís, abraço também. E aí que, no final, outro abraço coletivo e carregado de ternura quase me deixa sem ar de tão feliz: Gyvisson, Jessica, Renata, Laís, todo mundo junto pra desejar um dia bom.

E eu que saí tão cedo e deixei os filhos dormindo, recebi pequenos beijinhos e outros abraços de cada um desses meninos e menina. Ansiosos todos para a nossa pequena viagem. Eu também. Chegaram ainda telefonemas, carinhos, gestos felizes. E nesse tempo que foi o sábado e o domingo, fomos uns dos outros, só a gente, brincando e querendo mais. Até a volta pra casa e o encontro com a cachorrinha mais doidinha e meiga do mundo: Estrela. Manhã, tarde, noite de lua. Um aniversário inteiro pra curtir os filhos, sentir os abraços virtuais e concretos, planejar, viver. Feliz.

Carlota
01102012

sábado, 4 de agosto de 2012

Vez em quando

Vez em quando é preciso amar. Mas não aquele amor carnal, tão bom, intenso e desejado. É preciso amar a humanidade. É preciso olhar o trabalho com amor. É preciso, sim, é preciso, entender o ser humano que se esconde por trás de todos os defeitos de sua empregada, que às vezes lhe tira do sério ao desconhecer os mistérios culinários que se escondem em um prato de macarrão.

Partilhar a dor, a saudade, a tristeza é considerado sinônimo de amizade. A gente sabe que aquele que nos oferece o ombro é solidário. Mas vamos ser solidários na alegria. Vamos invadir a todos com uma energia tão boa, como se o dia hoje tivesse tido um passeio de bicicleta, uma caminhada à beira-mar, um abraço de filho cheio de dengo. Vamos parar de reclamar só um pouquinho, pintar as unhas de vermelho, dividir as impressões sobre um filme, dar uma parada para um banho frio de chuveiro. Vamos acordar.

Sou reclamona por natureza. Não, não é da minha natureza. TPM, dor e ex-marido às vezes me enchem o saco e sinto que os ombros estão sobrecarregados. Vou correr pra onde quando bate a vontade de colo? Foi simbora minha avó, minha mãe maior. Foi simbora o tio companheiro. Ainda tenho uma família por vezes arisca, outras afetuosa. E, com quase 43 anos, que desejo de colo é esse? Vez por outra é só a necessidade de dar uma pausa. Que ninguém para no colo no outro e se entrega às reclamações. Sim, elas iniciam essa espécie de terapia casual. Mas no final o que acontece é o descanso. A necessária pausa para se recuperar do tombo, da noite mal dormida, das dores, dos problemas, do cansaço.

Esse colo a gente quando cresce vai oferecendo. Aos filhos, aos amigos, à família. E descobre que esse dar colo também vai garantir uma pausa feliz. Porque nos desligamos momentaneamente do que somos ou do que estamos vivendo para apenas ajudar aquele que nos procurou. Para suavemente passar as mãos nos seus cabelos. E desejar em palavras ou só no pensamento que tudo se resolva, que a dor passe, que a vida acalme ou que ela se sacuda, cheia de malemolência para alegrar.

Dia desses estava no aniversário de uma amiga, que também é comadre, que também é sócia. E fiquei lá lembrando das batidas de cabeça que a gente dá. Pode escrever que somos três mulheres fortes, determinadas e absurdamente cabulosas. E olhando pra ela, a de olhos verdes, cantando pra ela ao lado de outra grande amiga pensei: meu olho agora é de amor. Vou olhar com amor essa amizade. Essa sociedade, esse trabalho. Apenas isso. Amor.

E amor a gente pode sentir ao ler um livro e se aquecer com uma história que se passa em Budapeste. Ou com um ciclista que surge durante a tarde. Amor a gente sente quando vê que conseguiu. Quando compra um esmalte laranja com glitter pra única filha que tem. Quando vê o amigo desenhar com um traço lindo. Quando vê um trabalho pronto. Quando a dor passa e a gente percebe que o dia é de sol.

Por isso, vez em quando, é preciso amar. Cuidar dos vínculos e do pertencimento, cuidar e se deixar cuidar, num enlevo suave como colo de mãe e de pai. Ou de vó, minha avó, minha querida. Hoje estou com saudade, é fato. Dolorida, tipoia no braço esquerdo, mas com vontade de amar essa Carla Patrícia que eu sou. Vez em quando. Vez em quando.

Carlota
04082012

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Manhã de chuva


Fiquei pensando meio bestamente nos ex-casos, amores, ficantes. Aqueles que ficaram na memória. E me peguei pensando na pegada maravilhosa de um deles, no jeito como me abraçava no sofá. E me deu vontade de agarrar aquela mão quentinha novamente e sair por aí dançando forró sem parar, até o dia nascer, a gente cansar. Me deu vontade de acender malboros e fumar junto, só olhando um pro outro curtindo o divertimento de ser apenas nós por ali.

E nessa manhã de chuva surgiu alegria. Porque o tão recente dia dos namorados solitário que vivi não me deixou triste. Se eu queria chamego, dengo, derretimento? Sim. Mas se não tive nessa noite específica, consegui parar apenas hoje para curtir ser dona de uma alegria que às vezes até irrita. Porque houveram momentos tão bons e inteiros, que nem uma convivência mais longa iria garantir o sorriso e a alma que trago hoje.

Pode ser porque cortei os cabelos, resolvi pintar as unhas de vermelho, carreguei no rímel e as músicas que por hora escuto são legais. Deve ser porque entrei de férias, para tirar as férias da sócia e amiga. Deve ser porque algumas coisas estão se resolvendo em mim, decisões que não preciso ter agora, mas que estão delineadas e surgem no esquema passo-a-passo, um de cada vez.

Pensando em meus amores, me senti feliz. Porque ainda lhes tenho um carinho que Deus me guarde um reencontro. Porque minhas tríades são implacáveis em não abandonar a memória dos afetos e dos sentidos. Porque quando foi, foi simplesmente, sem dor, sem mágoa, sem rancor. Porque tinha esgotado o a partir dali. Porque era apenas mais uma forma de não estar disponível nesse momento em pleno estado de graça.

Se um me convida ao café, a conversa é tarde inteira. Se encontro no chat, o que antes era reserva vira tranqüilidade. E se ainda há tempo para emails, sei bem que eles apenas nos falam de amizade e brincadeira.

Como faz tempo não escrevo feliz. Como faz tempo não me sinto tão assim. Como faz tempo. E na manhã chuvosa, que abriu-se em sol e se fez tarde nublada, surge esse querer bem que esquenta a alma esteja eu alegre ou triste. Hoje, alegre. Pois sim.

Carlota
15062012

terça-feira, 5 de junho de 2012

Estrada


Neste sentido eu nunca disse que haveria. Nesse sentido.

Então que foi preciso olhar de novo a estrada, consultar o mapa, ajeitar os óculos que escorregavam no nariz, oleoso àquela altura.

Nem posto de gasolina, nem pousada e ainda um completo desentendimento sobre as instruções que recebera.

Mapa, para ela, era sinônimo de labirinto. Não tinha nenhuma habilidade espacial ou de localização. Não sabia como discernir linhas de rio ou de estrada, não via, no caminho, o que o papel em mãos indicava.

E a porra do ar condicionado resolveu quebrar e o lugar nenhum onde havia parado estava quente. Não conseguia saber se o inferno era ela ou aquilo ali. Vai dar empate.

Desceu do carro e procurou ouvir em pensamento o cara a quem pedira informações. Nada. Nesse sentido, e em tantos outros, estava perdida.

Carlota
05062012

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Beleza

Eu sempre amarei a beleza. A linha do horizonte. O mar com nuvens pairando logo acima dele à noite. Eu sempre vou amar pessoas que amam a felicidade. Que se alegram. A música.

Eu sempre vou amar quem me encontre em uma tarde cálida e me fale verdades e mentiras. Eu sempre vou amar o barulho do mar. E cada abraço de cada um dos filhos amigos você.

Eu sempre vou odiar mesmice. Sempre odiarei um dia atrás do outro sem noites legais no meio. Vou odiar quem pensa que o começo pode ser mais tarde. Vou odiar meu tempo perdido.

Guardarei meu rancor mais profundo para os que tiram a vitalidade dos outros. Para quem se ofende após ter ofendido. Para quem torce a história e se faz de vítima. Vou odiar mortalmente minhas noites insones.

No amor, entrego: odeio cartas melosas, odeio silêncios abismais, separações. No ódio, amo a vibração que a ira provoca. Amo a intensidade com a qual a raiva nos torna humanos, a velocidade com que o desespero é dissipado para que o olhar dizime a pessoa com a qual travamos a batalha.

No amor, no ódio, sou cada um. Em cada face que cada um revela.

Carlota
23042012

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Um começo de história

A menina anda e esbarra em um começo que de brincadeira estava por ali, assim, de bobeira. Achou bonita, a menina. Quis conversar. Mas ela, que não dava mole para inícios toscos, apressou o passo e foi.

Nem percebeu o princípio de sorriso que o começo esboçava. Nem notou, quando almoçava, que o mundo parecia outro. Era só o começo que chegava. Na pressa, não viu folhas de árvores ou abraços. Corria. Temia o fim do dia.

O começo insistia. Fazia cócegas, cantava músicas, dedicava olhares... Fazia com que percebesse o som da caminhada. De repente, não estava mais cansada. E diferente se sentia. Já era um começo, pensava ele. E a provocava.

A angústia das luzes vespertinas se transformou em uma espécie de alegria. Soltou espirros, tossiu, engasgou. Os olhos se encheram de lágrimas e teve de parar e ouvir o que o começo lhe dizia. Rendida, pois nem respirava. Era o fim. Não. Começo. Não, é fim. Não resisto. Aflito, o começo lhe dá uma trégua. E ela, sabida, corre o que pode e o deixa para trás. 

Desconsolado, o começo olha para o lado. O meio e o fim, não satisfeitos, zombam do pobrezinho. Dia seguinte vem de novo a menina. Vestida de flores na blusa, com passos lentos, olha o começo, deseja bom dia. O meio então se levanta. Obrigado, amigo, agora é comigo. No que ela reage horrorizada. "É só o começo. Mais nada".

Carlota
15042012 

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Coisinhas

Sou apegada a coisas miúdas. Rascunhos, brincos, gestos uns. Pequenos objetos, como o vasinho de porcelana florido que o vento fez cair do terraço. O cheiro de giz de cera. Seixos coloridos.

Parecem eles mais abertos a serem amados. Os traços com bico de pena, aquele terço embaraçado. Eu amo coisinhas.

Como a cachorrinha lá de casa, divertida companhia que me roubou das manhãs os passarinhos. Quem ousaria entrar na sala agora a buscar farelos, se há entre nós uma caçadora? As manhãs, quando invadiam suavemente o debaixo da mesa em voos rasos, eram mais frescas.

Também me encanto com rostos desarmados, olhares escuros, sorrisos, alguns chuviscos. Lembram espaços a ocupar, memórias, marcadores de páginas. Pedem presença, inspiram afeto.

Uma contradição olhar todas as folhas miúdas do flamboyant. Mas é que o vento sugere a leveza que elas tem. E, nessa dancinha, o que é estático ganha movimento. Minha árvore vibra em raiz.

Do céu, a nuvem. Da praia, o grão. E, surgindo um besourinho, corre o menino e o prende na mão.

Carlota
040412

quinta-feira, 29 de março de 2012

Domingo no Parque


Preguiça. Que ele não saiba, mas penso seriamente em desmarcar o encontro e curtir nesse domingo a minha cama. Preguiça. Levanto, tomo banho, deito de novo. Preguiça. Não há ninguém em casa, o sossego é meu. Levo o jornal para o quarto após o café e leio até a revista da TV. Não vou sair de casa nesse calor. Não quero ver ninguém.

Acordo perto das 13 horas. Quase em desespero. O encontro era às 14, no Parque da Jaqueira. Não ia chegar a tempo. Resolvo ligar. Digo que só agora me arrumo e que vou atrasar uma hora. Tudo certo.

Quando entro no parque lembro que a gente não disse aonde iria se encontrar. Não há celular para eu ligar e saber. A única referência era uma imensa toalha em tons de laranja que ele prometera levar para que a gente sentasse aproveitando a tarde. No lugar, skatistas, adeptos da corrida e caminhada, evangélicos em pregação, ciclistas, crianças, pipoqueiro e vendedor de churros. Vou tentar imaginar como você pensaria, onde você está.

Míope e sem óculos, vou olhando todas as pessoas no gramado. Até decidir usar a lógica ou intuição. Vou seguindo em frente e encontro você lendo o mesmo jornal que horas antes eu havia devorado. A toalha laranja ajudou. Você de bermuda, eu de jeans e camiseta (que fiquei em casa pensando se dava pra usar vestido e deitar na grama). Na dúvida, e na escassez de saias longas, optei pelo mais fácil.

E a gente ficou ali, conversando sobre certas angústias, certos amigos, alguns planos e outros sonhos. Os dois com lápis e cadernos que, nesse dia, não foram usados. Não havia necessidade de registros visuais daquela tarde. Guardamos todos em nossos olhos. A menina soprando para mim algumas bolhinhas de sabão. Sermos usados como esconderijo na brincadeira de um grupo de crianças. Ver um menininho dando passos ainda cambaleantes, ao lado da mãe e da irmãzinha, deliciada pela experiência de tê-lo tão perto e comandar um tanto sua caminhada.

A grama estava um pouco molhada, relembrando a chuva da manhã. A gente estava quebrando a tristeza em pedacinhos, jogando na toalha, rindo do que cada um achava muito grave. Era nosso jeito de nos divertir. E haja conversa pra dizer como conversar com outro. E haja instrução pra desbloquear meus traços. E haja observação de árvores, igreja, pessoas, chão.

Na vontade de comer churros, descobrimos o gosto em comum. Aliás, ambos adoramos doces. Quanto mais brigadeirados melhor. E de repente deu vontade de uma terceira amiga, dela estar ali. Risonha, divertida, louca de pedra (assim como nós dois), não custa ligar pra ver se chegou da viagem à Amazônia. Ela atende. Voz de sono, disse que sim, queria nos ver. Mas num ponto próximo de sua casa. Combinamos de ir até uma lanchonete na Av. Rosa e Silva para encontrá-la.

Hora de recolher a toalha, receber elogios pelas nossas bolsas (cada um gostou da usada pelo outro) e de sairmos caminhando. E como a gente gosta de andar pela cidade da gente. Devagar pela rua do Futuro, quebrando à esquerda na Malaquias, entrando na avenida. O percurso, sei lá, 15 minutos, e ela estava lá. De sorriso, de cansaço, de corpo todo esperando abraço. E a gente feliz, que a saudade foi grande.

Pra onde? Pra uma sorveteria escondidinha que ela não conhecia, a Santo Doce. Tiramisu, morango, leite ninho, cocada, nenhuma calda. Antes, um copo d’água. Cada um vai na escolha do outro e descubro o sabor de uva fresquinha no sorvete de vinho do porto. Apaziguados, com todos os detalhes da viagem contados, vamos à casa de Pedro, no Derby, caminhando juntos. Antes, passamos na de Jullie, também pertinho, para comer delícias do norte.

Na casa de Pedro direto para a cozinha. Torradas, geleia de açaí (gostei não), doce de banana, chá. Muita comida para poder juntar tudo em conversas amenas. A tarde/noite de domingo foram curtas. Para mim ficou a obrigação da despedida, pois tinha de voltar para Olinda. Ao chegar em casa, um email feliz informa do quanto nós duas deixamos o dia mais leve.

Mas acho que não foi só a gente não. Foi a cidade. O caminhar sobre ela se sentindo dono. Ciente da vontade de apenas flanar e observar prédios simpáticos, casarios, vitrais que ainda persistem naquela avenida que também abriga prédios imensos. Ainda existem recantos e uma vontade grande de senti-los em passos pequenos. Nossos.

Carlota
290312

sábado, 10 de março de 2012

Abraços


Uma noite dessas entrei no quarto do meu filho para vê-lo dormir. Abri a janela, ajeitei o lençol, acariciei seu rosto, enroscando a mão direita em seus cachos claros, com suavidade, para que não despertasse. E escuto a voz rouca desse menino/rapaz que quase ultrapassa sua cama dizendo: mãeeee. Estendeu para mim seus braços e me prendeu entre eles, num momento de encaixe entre nós dois. Beijei-o, desejei-lhe boa noite, sonhos felizes, o abençoei com meu deus. E o coração nesse momento encontrou paz.

Quando ainda éramos casados, o pai costumava sempre ir ao quarto deles, como a protegê-los no sono, com beijo de boa noite quando chegava tarde. E nesse momento meu filho mais velho falava dormindo “eu te amo, pai”. No que eu suspirava, quase em ciúme, porque nunca consegui o mesmo. Então que esta semana, quando ele me abraçou, disse a mim mesma: agora ele também me sente.

Pode ser um grito desesperado, um abraço. Pode ser nossa forma de não gritar. Usando o facebook, lembro de ter lido o post de uma ex-aluna pedindo um abraço. No que prontamente foi atendida em uma série de comentários de afeto. Ainda ontem uma amiga falou na vontade de um abraço de mãe. Amparo, aconchego ou apenas a familiaridade de quem nos recebe sem perguntas, com nossas luzes e sombras, nesse abraço materno.

O meu era de vó. Uma matrona poderosa, calada e observadora. Que me deixava deitar ao seu lado, abraçando aquele corpo gordinho e quente. Se havia tristeza, era partilhada. Se havia dor, ela ia se esvaindo. Se era felicidade, alegria, alegria nesse abraço de vó.

Esta semana foi pautada por abraços. Começando no domingo, pelo de minha filha, geralmente a primeira a se afastar do carinho. Acostumada que estou a uma certa impaciência dela em abraços demorados, estranhei quando ela me puxou novamente, ampliando  a permanência de nós duas.

O abraço é um jeito de ser sincero e falar “hoje eu pensei em você”. Também uma maneira de sentir por inteiro, de vislumbrar a alma ou confessar: preciso, preciso, preciso. Recebi e dei abraços esta semana. Alguns quase pedi. Outros, espontâneos e tranquilos, abriram caminho para um riso entregue, cumplicidade, certezas. Não abracei uma causa, não abracei meus vizinhos, anda travo com algumas pessoas. Mas ele está lá, porque hoje pensei em você. E desejei lhe abraçar.



Para amigos muito queridos, na sequência da semana: Pedro Bezerra, Jullimária Dutra, Gabriela Valadares, Ana Maria, Margarette Andrea, Pedro Medeiros, Cláudio Bezerra. E, também, aos três seres fantásticos que me recebem e acordam com beijos, abraços, felicidade: Igor, Marina, Ian.

Carlota
10032012

quinta-feira, 1 de março de 2012

Café com bobagem


Dos vícios que carrego com felicidade está o de ser uma leitora voraz e de beber café. E não me esquentem a água para um cafezinho instantâneo. Quero um sabor verdadeiro, encorpado, de um café bem forte, puro, que batizo com pouco açúcar. E, se for com leite, este deve ser fervente e em maior quantidade, quase um espresso latte. Café instantâneo me lembra leituras rasas, romance açucarado, personagens sem alma. 

Marcar um café pra falar bobagem ou refletir sobre a vida, vício maior. Hoje me rendi ao cappuccino com uma amiga. Juntas, dividimos um pão crocante com um recheio que não vou contar, mas que era acompanhado por um molhinho de mostarda com geléia delicioso. Assim como nosso encontro inesperado com um grupo do qual sinto falta. E que estava lá, no mesmo café, o Bogart. À mesa, afogattos, torradas, antepastos, aromas. E uma sintonia de quem vive e brinda também com café. Alegre a reunião, porque sem pretensão de acontecer. Relembramos pedidos em restaurantes, revi Anna Constantino, minha companheira de viagem, e outra de trabalho, Isabel. Conheci Gabriel. 

Lembrou-me o Café com Alma, de Celina e Mauro, espaço perfeito para os amantes dessa bebida e de comidinhas inesperadas, como uma tapioca de queijo gouda com geléia de uva que nos surpreendia pela inusitada e saborosa combinação. Estive neste café em sua última noite de funcionamento, a convite. Poucos sabiam de seu fechamento, eu não estava incluída. Confesso: se soubesse que não teria mais a possibilidade de apreciar a tapioca, o brownie e os frapês espetaculares, incluindo um de negresco inesquecível, teria pedido um de cada, só pra me despedir.

A amiga, os amigos, o cappuccino; o local, a noite, a comida, as bobagens. O conjunto me deixou mais leve naquela noite e hoje também. E vem daí que agradeço a Érica Nunes por ter aceito o convite feito ainda domingo para o que foi um intervalo prazeroso em uma noite de quarta-feira, mesmo sabendo que eu teria pouco mais de meia hora pra curtir o bate papo. Dos vícios que carrego com felicidade está o de estar sempre em boas companhias. Com ou sem café.

Carlota
01032012

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Fui, vi e curti

Assim como alegria, também se fabrica tristeza. Sabe não? Coloque-se aquelas músicas que relembram as dores mais profundas, angústias, as perdas. A tristeza é acachapante, de dar dó no mais duro ser humano. Há de se ficar triste às vezes.

Mas o mote não é essa senhora cinzentinha e invocada que gosta de passear em letras doídas/chorosas e sim a alegria, também ela fabricada.

E nessa história de produzir alegria, basta só um carnaval. Quer dizer, cinco dias de folia nos quais se deixa a vida de lado, abre-se uma vida nova no peito e na raça e descobre-se que, sim, é possível se divertir.

A resistência em encarar a chuva, a distância, a falta de táxis, as amigas distantes. A insistência em frevar mesmo com chuva, andar quilômetros acompanhando troças, blocos, maracatus, multidão. A conversa interminável com um mau humorado taxista que enfim rendeu-se e confessou: também comeu coxinha na Karblen e adorou. Os amigos por perto.

Cerveja gelada, cerveja quente. Vassourinhas, Agridoce, Baque Solto, Baque Virado, Otto, Alceu, Lenine, Lirinha. Lama, ladeira, palhaço e pirata. Chuva que Deus mandava. Caminhada de seis quilômetros para comprar uma colombina. Beleza, crianças, música, música, música.

E, seja menino ou menina, sempre tem quem gaste a retina procurando alguém na multidão. E na ausência da procura, se encontra. Dez, 15, 20 vezes, 20 mil pessoas diferentes. Lindas senhoras do Bloco das Flores, da Saudade, Banhistas do Pina, Flor da Lira. Posso fotografar você, minha rainha? E 300 sorrisos se abrem, em harmonia.

Alegria fabricada para saber que ela existe. E é só abrir o olho, o riso, os braços e acompanhar a beleza que ela aparece. Numa caixa de confete, purpurina, no copo descartável, no abraço, beijo, na brincadeira de vestir a fantasia e se encontrar. Eu me rendi a você. E fui carnaval.

Carlota
22022012

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Vou ser Carnaval pra você


Nas vésperas do Carnaval escolhi umas músicas lindas para escutar (entre elas Fix You, de Coldplay). Dessas que embalam sonhos, perfumam, relembram saudades. E um sorriso ao meu lado surgiu na tela do celular, enquanto a música escolhida rodava no meu quarto... Um sorriso de folião, de felicidade, de um cúmplice perfeito. Ricardo Pacheco.

E decidi que vou curtir esse Carnaval lembrando do seu  gosto por essa farra. Deixa eu lhe trazer à tona assim, com alegria, com amor, com os poucos passos de frevo em que me arrisco, com minha – lembra? – fantasia de palhacinho (diferente nos detalhes, igualzinha na essência). Saudade boa essa agora, meu amor. Saudade de sua vida bem colada na minha. E da sua mão na minha, para eu não me perder no Galo da Madrugada.

Recusei convite para curtir a paz, a natureza, em uma ilha deserta, tão bela e em boas companhias. Vou brindar você com cerveja, sentindo o coração e a pele arrepiarem com o som do Vassourinhas. Vou beber você, amar você, vestir você, dançar você nesses três dias. Sim, vai ter folia, meu bem.

Vou me aliar aos amigos carnavalescos. Vou olhar a cidade com olhos de turista, vou cansar o corpo em movimentos precisos de quem quer só dançar.

Ouvindo o frevo.
No passo, sem pressa.
Vou ser Carnaval pra você.

Eita saudade!

Carlota
160212

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Como se faz?


Uma fantasia, um Carnaval, um samba, uma ode, um romance? Como se faz o concreto quando o que a gente pensa nem existe ainda? Como se faz? Como se quer, como se pretende, como se chega nisso aí? Acabei de criar um quadro com metas/pretensões/ideias/propostas para os próximos 10 meses. Até dezembro tem coisa por lá. Tem tanta, na verdade. E eu torcendo mesmo para fazer tudo o que estou propondo, assim, suavemente, mas com um tanto de imposição – é pra ser, é pra fazer, é pra abstrair -, viu, moça?

Devo ter esquecido coisas fundamentais, tipo ser mais amena, mais alegre, mais contemplativa. Devo ter esquecido de anotar que é preciso parar também. E que é fundamental não ficar parada. O que mais curti nesses esboços de hoje foi anotar as palavras que eu quero que comandem 2012 para mim (vou aproveitar que é um ano par, que o astral começou bem): entusiasmo, compromisso, alegria, amor, persistência, família, disposição, vontade, amizade. Tinha outras lá, mas estou esquecendo. Aliás, estou esquecendo um monte de coisas desnecessárias também. Carregar uns pesos chatos. Desconfiar de que, em algum momento, eu não vou dar conta. Outras lembrei com felicidade: vai ter viagem, sim, vai ter partilha, vai ter coisas bem legais para aprender. E relembrar.

Revista Piauí de fevereiro (edição _65) me traz uma seção denominada questões afeto-desportivas. O autor, Ricardo Lísias, começou a correr após uma crise, após ter se separado, no meio de um romance acordado com uma editora, antes de uma oficina literária que iria ministrar. E foi a corrida que o impediu de sucumbir/perecer/enlouquecer (fiquei na dúvida sobre qual palavra usar). E hoje, aproveitando a momentânea licença do trabalho por conta de uma conjuntivite, fui caminhar na praia (santo remédio para quem quer pensar). Mudei o horário, que não estou agüentando o sol por enquanto. E assim, próximo às oito da noite, vou para o calçadão. E resolvo tirar o fone de ouvido e escutar, de verdade mesmo, os meus pensamentos.

E o que era caminhada foi corrida bem umas seis vezes. O fôlego ainda não me dá o direito de correr mais do que cinco minutos intercalados com a caminhada. Mas quando eu corro, é de boa, é de vontade mesmo, é pra deixar o que quer que esteja me incomodando lá pra trás. E tanta coisa está, nesse momento, nesse tempo incômodo. O maior, talvez, seja o não sentir. Sem grandes entusiasmos, sem um tanto de indignação, sem choque, sem medo, sem transgressão.

E me vi pensando que eu quero muito, muitas coisas diferentes. Aprender está em praticamente todas elas. Aprender a viver comigo, com os outros, com a vida que existe a cada dia, a cada pessoa que conheço. Aprender que eu não quero ser compreendida, explicada, esclarecida. Quero ter pontos obscuros, quero ter pontos excessivamente claros, quero tanto, tanto, que nem sei.

Como se faz uma vontade? Como se faz a realidade? Como se faz para trazer à tona o que é preciso para aquele exato momento? Não tenho nenhuma resposta. Aliás, parece que não tê-la é o requisito fundamental para viver. Que a vida então se faça. E me faça renascer.

* Sobre a corrida. Ao falar com uma amiga sobre uma ocasião em que simplesmente não pensei em nada, só fiquei sentindo o vento, o piso, o corpo em movimento, ela me explicou ser uma experiência de presença, algo que a gente sente quando faz ioga, por exemplo. Porque eu estava completamente, inteiramente ali. E, posso dizer, é uma das melhores coisas que se pode sentir. Thanks, Anamaria, pela explicação.

Carlota
150212

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Doce

Um casal de mãos dadas. Uma menina nos braços da mãe. Uma cacheada garota brincando com o cachorrinho. O jeito que você sorri.

O casal de mãos dadas traça um percurso igual quase todos os dias, duas pessoas que devem ter mais de 50 anos de partilha. Ele, um senhor grisalho e de óculos, me deseja bom dia. E eu retribuo com meu melhor sorriso, com minha vontade, com passos mais firmes, porque vejo que os deles são vagarosos, como se já nem tivessem pressa em cumprir a rotina de caminhar. Ela parece mais velha – terá sido a vida mais dura – ou mais frágil.

Quando não os vejo, me preocupo. Porque já lhes quero bem há muito. Pois ele também é adivinho, não disse? Há cerca de um ano deparou-se comigo quase em prantos, na volta de um exame que confirmou a lesão no meu ombro. E não é que me olhou bem fundo e disse: saúde, filha, saúde. No corpo e na alma. Como não melhorar depois disso? Eles não sabem, mas lhes tenho um afeto cheio de ternura, porque me acompanham em poesia.

Ela não tinha um ano. Para onde eu ia? Não lembro. Sei que estava em um ponto de ônibus e olhei ao redor. Vi uma jovem com uma menina nos braços. Chamou minha atenção e foi aumentando a doçura da tarde observar o encantamento da filha pela mãe. E não o contrário. Tocava o rosto, os brincos, os fios soltos do cabelo materno. E sorria. E puxava e ria de riso solto e alegre. E seu olho era um descobrimento, então é essa, minha mãe, e é linda, será que sou igual? E a mãe, entregue, não a largava do colo, cheia de cuidado mesmo na ameaça de ter seu brinco arrancado pelas mãos buliçosas.

Reduzo o ritmo da caminhada na praia e penso em como queria saber desenhar. Porque vi pai e mãe passeando cúmplices com a filha e o bichinho de estimação, um poodle tão cacheado quanto a menina que não parava nunca. Avançavam, voltavam e a brincadeira dela era deleite para os dois. Como descrever a roupa que não consegui desenhar? Era início de noite, beira-mar, um tanto de frio. Camisa branca de mangas compridas, camiseta rosa por cima, sainha, meias escorregadas pelos tornozelos, tênis. Só a vi de costas, de cachos negros, de felicidade.

Sorriso. Jeitinho enviezado esse de demonstrar alegria. Mas quando ele se abre, é menino. O olho brilha, perfeito. E recebo como presente raro.

Vou adoçando a alma, a vida. Porque ela se mostra como quem é tímida e se revela aos poucos. Como quem não quer dizer e diz. Como quem precisa ser descoberta. De pura beleza, de doçura, dias inteiros. As noites também.

Carlota
070212

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

De como eu preciso matar você

Sim, meu amor, preciso. Porque não seria justo comigo permanecer com você tão vivo e tão perto. Preciso que você morra, querido; que seja transformado, pranteado em um altar imenso e cremado e espalhado pelos ventos em algum lugar que não me lembre você. Uma geleira, uma salina, uma cova rasa. Um bueiro, um beco, um buraco em algum caminho.

Perdoe-me, querido, se sou assim. É porque preciso matar você. Mas não é fácil. E não imagino câmaras de gás, latrocínio, suicídio. Imagino apenas suas cinzas espalhadas em algum lugar que não me lembre você. Uma esquina, um bar sujo, um banheiro impregnado de urina.

Ah, meu amor. Vou matá-lo de um jeito doce, você nada irá sentir quando eu lhe beijar por último e rir depois. Nem vai perceber que está morrendo lentamente nos meus braços, porque demorou a entender que eu já nem queria. Nem notou que meus olhos são covardes e não lhe olham mais?

E minhas pernas irão se alternar com as suas. Minha boca, sua boca, que beijo é esse que me inspira bohemias e malboros e uísques, pão de queijo, sorvete, vinho do porto? Vou matar você. E jamais sentirei fome, nem sede, nem frio. Mato você com requintes de crueldade. Olhando juntinho, lambendo sua orelha, abraçando o vizinho. Meu amor, é preciso.

Quando o príncipe vira sapo ou um sátiro e cai por terra a imagem de um, de outro, de nós, só a morte. Só matando você e enfiando suas cinzas num envelope pardo e eu lhe despacho pra Groelândia, pra Finlândia, qualquer lugar onde eu jamais irei. E no escapamento de um carro, na garagem, na escada, no fio da navalha, eu mato você. E é bom.

Carlota
31012012

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Surpresa

Engraçado como cansaço vai embora rapidinho quando a gente, de repente, percebe que está feliz. Comigo aconteceu após uma crise pessoal, irritadiça, chata. E resolvo fazer algo que não fazia há anos, sair com outra turma que não a costumeira. Fui com minha afilhada de 18 anos e uma amiga sua de 21 para uma boate de música latina.

Uma terceira aparece com ingressos que nos garantiram 50% de desconto. Detalhe, só depois de uma conversa porque, infelizmente, as entradas eram para o dia seguinte. E lá vou eu pensando o que estava fazendo lá com duas meninas com metade da minha idade. Peço uma cerveja long neck, fico bebericando, vem um fotógrafo de um blog, registra minha passagem por ali.

Então que vendo aquelas meninas dançando tão sem frescura, sem pressa, fui ficando alegre. Porque fiz algo que eu adoro, dançar. É algo como correr na praia, comer uma fatia de bolo de chocolate, entre outras coisas bem legais que não preciso dizer. Pra mim é uma catarse.

Dançamos todas, no final éramos cinco (uma das quais conhecia todos os dançarinos), das 23 às 3 da manhã. Quatro horas ininterruptas de ritmos latinos, dance, bregas rasgados, tudo tão bem dosado, que não havia como não gostar de estar ali. Agradeci o fato das meninas terem se aventurado em sair com a tia e curtido dançarmos juntas, sem a pretensão de analisar se eu, nos meus 42 anos, devia ou não estar em casa lendo um livro (coisa que também adoro fazer) ou cuidando dos meus filhos.

Confesso: minhas pernas estavam arrasadas na manhã seguinte, no mesmo dia no qual iria para um aniversário. E minha delícia foi ter encontrado tanta gente boa reunida, de idades tão variadas, além de dois DJs irresistíveis. Não vou mentir. Dessa vez fui das 21 até quase duas da manhã, nem sei bem como. Vai ver porque era sábado, porque um dos aniversariantes era alguém querido, vai ver porque todo mundo queria se divertir. E foi bom. Quando percebi estava ao lado do DJ e o sono era mais do que uma insinuação. Ainda resistente, me despedi.

O domingo, chuvoso, me fez acreditar no cancelamento da última farra do final de semana. Que nada. Poucos de nós foram, mas quem estava queria participar da orgia de beber, comer e estar entre amigos falando da vida e acreditando que a gente se alimenta disso, dessa partilha. Após 21 dias sem empregada, sem férias, em crise, aflita, tive um final de semana perfeito.

Principalmente pelo inesperado. Naquela chuva, em meio a um certo desânimo, apenas decidi ir aos três lugares, sem nenhuma expectativa e, confesso, sem grandes entusiasmos. Para minha surpresa, me diverti muito. O cansaço foi para o espaço e eu, de banzo, fiquei feliz.

Carlota
24012012

sábado, 21 de janeiro de 2012

Irritação

Como eu ando irritada, meu Deus. Como quase tudo implica em arranhões na alma, som de tampinha arrastando no asfalto, apito no ouvido, sol de meio dia. Como quase tudo me deixa tão à flor da pele. E sai triscando em uma sensibilidade de carne viva.

Não queria mais um telefonema, uma pergunta, asfalto molhado de chuva caindo o tempo inteiro. Não queria mais dar explicações, esconder os olhos, baixar a cabeça na incerteza. Não queria hoje nem amanhã. Só ontem, que foi melhor.

E uma música se sucede à outra e eu escuto Tulipa Ruiz, escuto Teatro Mágico, escuto Zeca Baleiro. Alguém me diz Vinícius, para alegrar, mas não me deixou alegre, Vinícius. Poesia demais, amor demais, paixão demais para quem está tão irritada, meu Deus.

Não devia ter tempo pra isso. Não devia ser tempo disso. Mas se há tempestade, não quero mais sentir. Se há tempestade, não quero nem saber. Se tem alguém que não quer saber agora nem mais tarde sou eu.

Quero uma cerveja gelada, uma tarde engraçada, umas cinco mil gargalhadas, em uníssomo, de alegria, de alegria, de alegria. Um abraço, de derreter todas as geleiras e calotas polares, quente, inteiro, feliz.

Mês que vem é Carnaval. Momo, me espera, me dá uma trégua, uma chance, me concede uma dança pra eu poder me levar. Me arrasta, me faz foliã, me deixa descalça, no passo, até encontrar o asfalto molhado nas cinzas da quarta-feira. Pra essa irritação passar.

Carlota
210112

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Encaixotando

Uma tentativa de me libertar de qualquer doçura, mas isso já é frescura, que homem não começa texto desse jeito. Lá Mané é doce? Então, estava lendo a prosa de Rubem Fonseca, de Luis Fernando Veríssimo, de Xico Sá. Tá certo, Clarice Lispector me enreda, faz minha cabeça, mas tem horas que eu queria pensar como esses caras, sem tantos tortuosos caminhos e elaborações femininas. Sabe aquela expressão: pei, buf? Pois. Essa aí. Ir direto ao ponto. Então que vou esquecendo esse rodeio todo pra entrar no que me interessa. A teoria das caixas.

Acredito piamente que cada um deve ter uma coleção de caixas bem escondida em lugar incerto e não sabido, a não ser pelo dono, é claro, que vez por outra pode até esquecer que ela existe, mas vez em quando também amplia a coleção com uma maior, outra pequeninha, quando viu, depois de anos, já tem um acervo considerável.

São segredos. Coisinhas que você fez e não vai contar nem na hora da extrema unção. Que só você e Deus (para os que acreditam em uma força onipresente maior) sabem. A última fatia de bolo que você, obviamente, disse que não comeu. A mordida no lábio, pra sangrar mesmo, de puro ciúme. As noites rolando na cama ou esperando uma ligação. O medo de perder o emprego que você não contou a ninguém. O caso com o marido da sua amiga, da sua mãe, da sua filha. Aquela vez que você mentiu que não estava em casa, quando tinha resolvido ir pra balada sozinha. Ou a doença inventada pra queimar uma segunda feira chata, chata, chata.

Até o mais correto cidadão tem uma caixinha, vá lá. Aquele tesão incontrolável pela estagiária que, obviamente, não vai dar em nada, mas o tesão está lá, presente. O troco que esqueceu (mesmo?) de passar. O sinal vermelho ignorado. O ressentimento, a poesia escondida, o esqueleto no armário.

Alguns são mais hábeis. Ao invés de uma coleção para guardar segredos, guardam a vida em compartimentos bem lacrados, cujos conteúdos não se misturam, para não desandar. São praticamente insolúveis. E então dá pra manter uma amante e continuar casado. Dá pra ser correto no trabalho e a peste no trânsito. Ter cara de anjo enquanto come até a mulher do vizinho. Detestar alguém mas manter a casca de civilidade porque é importante para a carreira. Manter um romance na clandestinidade enquanto preserva a imagem de alguém praticamente assexuado. Pois é. Uma vida feita em caixinhas.

Vai daí que entendi uma crônica de Luis Fernando Veríssimo, sobre uma senhora casada que começou, de repente, a colecionar caixas. E aí que todos adoravam, sabiam o que lhe dar de presente de aniversário. Até o marido contribuía, parentes, amigos. De caixas de chapéu francesas a lindas miniaturas indianas. Então que um dia a polícia chega na casa e encontra o marido da fulana completamente distribuído entre as centenas de caixinhas. Em cada uma um pedacinho. E os amigos comentaram, depois de terem narrado o horror dela ter usado os presentes desse jeito: alguma ele deve ter aprontado, lá isso deve. No que eu absolutamente concordo com Veríssimo.

Carlota

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Será?

Quem escreve tem uma cobra venenosa dentro de si, diz lindamente Cícero Belmar (pela boca de uma mulher cheia de rancor, personagem de um dos contos) em sua nova obra Aqueles livros não me iludem mais, que ainda não li, mas que me provocou uma imensa vontade desde. Porque ele trata justamente do papel da literatura na vida das pessoas, não como uma coisa boa, mas como algo que atormenta os personagens de seus contos. Li a entrevista no Caderno C do Jornal do Commercio e como me deu vontade de sentar com o escritor e jornalista para uma conversa sobre como foi que ele chegou a essa conclusão tão reveladora.

Porque os livros podem sim, salvar uma pessoa. Podem tirá-la do tédio, da ignorância, da mesmice, do que a gente nem sabe. Mas que algumas vezes a gente para e reflete se ter lido tanto, ter conhecido Edgar Allan Poe, Simone de Beauvoir, Anaïs Nin, Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Luis Fernando Veríssimo, só pra citar alguns, permitiu que a gente fosse mais feliz além do espaço de tempo dedicado a essas leituras.

Estava em uma livraria, pensava em uma decepção e não contive o impulso de comprar, vai ver porque estava triste. E lá vou eu carregando para casa um volume de contos de 600 páginas de um autor do qual eu nunca tinha ouvido falar. Antes de levá-lo, junto com outro sobre manias, um de Woody Allen (com o simpático título de Que Loucura) e mais outro sobre a prática da escrita, li um trecho apenas de um dos contos. E ele me fisgou. Porque o personagem estava praticamente na mesma situação que eu, procurando sentidos. E travava um diálogo quase ininteligível com o coadjuvante daquela cena. Pois é. Não me arrependi do impulso. E as explicações para o sentido das coisas deixei de procurar, pelo menos naquela semana.

Passado um tempo me deparo com a entrevista de Belmar, cuja obra lança hoje, na livraria Potylivros, a partir das 19h. Diga-me, meu querido, porque não poderei ir, o que a gente faz com essa cobra? Porque ela morde e não assopra. Ela invade e não respeita. Ela se torna um pedaço impregnado de sangue a respingar veneno. E como por vezes odeio a escrita.

Porque nela consigo ser mais desenvolta, delicada, explícita. Porque me apaixono por textos inteiros. Porque morro de inveja das crônicas de Xico Sá, sem volteios e mesmo assim tão repletas de poesia quando tratam de paixão, seja por mulheres ou por uma cidade inteira. E odiei Rubem Fonseca após Pequenas Criaturas. Quase matei Chico Buarque por Budapeste. E como agora sinto desejo por Aqueles livros não me iludem mais.

Ele, então. O grande burilador da alma. O desejo. Será?

Carlota
190112

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O garoto da bicicleta

Li as críticas sobre o filme em revistas e jornais. Fiquei com vontade e, em um sábado solitário, vou para um cine de arte na cidade. Encontro uma amiga, ela compra meu ingresso, entramos juntas naquela sala. Primeiro espanto é saber que alguém simplesmente não desgruda de um celular mesmo estando num cinema tão específico, com filmes fora do circuito comercial. O cara atende na maior tranqüilidade e, ao invés de dizer que não pode falar (porque tem gente que ao invés de não atender diz isso), começa a conversar. E aí que a gente fica meio constrangido e meio irritado, esperando o diálogo terminar. Foi curto e chato. O diálogo.

As cenas de abertura mostram um menino loiro ao telefone. Mostram de novo ele sem acreditar que o número discado não atende mais. O enredo do filme trata desse menino abandonado pelo pai e sobre uma mulher que surge em seu caminho. A dor do abandono, afeto, escuridão. Daí que a primeira metade para mim foi mais intensa. E a cena na qual o menino encontra a realidade junto com seu pai e, no processo, começa a se flagelar, foi dolorosa. Porque a cena faz a gente lembrar de dores que nós próprios já sentimos.

Como quando ela é tão insuportável que nos dilacera. Como quando o grito sai mudo para não acordar os vizinhos. Como quando a gente vê que não tem volta. Alguém que se foi. Alguém que não virá. Um dia perdido, nublado, esquecido. Uma perda. E quando saí de lá fiquei imaginando Almodóvar, não me peçam explicações sobre isso. O filme não tem nada a ver com ele. Tinha a ver com a necessidade de ver algo mais forte, mais denso, visceral. Porque, confesso, eu gosto de Almodóvar.

Ele constrói personagens vivos. Que tem conflitos, que tem sexo, contradições. Porque ele me surpreende com suas narrativas, me incomoda, me deixa aflita. Porque também já me deixou amena. De Ata-me à Tudo sobre sua mãe, Má Educação, entre tantos outros, completamente fisgada já pelos títulos, não vi A pele que habito. Estou preparando uma noite para assisti-lo. E para ser assaltada pelo inesperado de uma história que, peço, não me contem.

Carlota
180112

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A vida não tem o menor sentido

Conversa com ex-caso dá nisso. Resolvemos ser amigos naquele café e em meio ao cotidiano apresentado a cada um, à divisão de novidades, leitura de textos, comentários sobre vestidos e blusas e um de leve segurar as mãos; no meio daquela comida que dele foi muito melhor (e em raríssimas vezes eu erro o que pedir no cardápio), aquele cara de signo chinês igual ao meu tenta me convencer que a vida não tem o menor sentido. Não tem, viva um dia de cada vez, pra que procurar explicação?

E hoje, que andava envolta em musas e motes, tive a frase entranhada no que seria uma tarde entre a cozinha e os layouts no computador. E o que martelou a cabeça, veio me pegar assim de madrugada. Porque acho que começo a concordar, o que é isso, como é que é?

Quer dizer que não foi o destino que me fez ir àquele aniversário, provar ainda na mesa uma sandália altíssima e desistir de vez e ficar com a rasteirinha, mais adequada à simplicidade de um forró? E que nessa de estar cansada e alegre e festejando a vida da amiga, fico dançando soltinha e pousa uma mão em minha cintura?

E eu, que nem estava pensando em nada, me viro pra começar a dançar com você? E que um dia antes eu tinha ficado arrasada com um cara de signo chinês igual ao meu? Rá! Foi destino não. Mas foi ótimo, tanto mais porque de rasteirinha a gente ficou exatamente do mesmo tamanho.

E nesse cruzar de caminho da gente, a gente foi se vendo e foram o que, três, quatro, cinco anos? Nem sei. Porque todo encontro é quase vontade de começar de novo e se a gente não começa é porque já sabe onde vai terminar. A vida não faz sentido mesmo.

Não faz nenhum sentido. Porque não dá pra explicar o que acontece quando duas pessoas se encontram e, absolutamente, não conseguem se aproximar. Pode ter amizade, respeito, tesão, alegria, ironia. Mas não vai, emperra, eita filminho repetido esse. Não tem sentido. Absolutamente como ter sido feliz com o ex-marido, como tê-lo conhecido muito antes, ter voltado a conhecer, ter permanecido junto e depois ter ido.

Mulher é que cria romances, histórias, crônicas, declarações (sim, Marisa Monte já disse isso. Ou quase). Mulher é que sai procurando um sentido para aquela pessoa, naquele momento específico, ter cruzado o caminho, ter aberto a porta, ter olhado com olhos quentes, ter se aproximado dela. Por que foi que eu tropecei e esbarrei logo nessa criatura? Por que, entre tantos mortais, eu encontro você logo no show do cara que eu mais detesto (e você também), só porque estava acompanhando uma amiga e ela meio que me deixou por aqui? E seus amigos resolveram também se perder?

E se a solidão chega, se o caso acaba, se a dor recomeça, se a tristeza se instala, lá vai a mulher pensar que o cara era o homem da sua vida, que ela era a mulher da vida dele e que o destino, esse indefinível e cruel arrebentador da vida alheia, é que cuida para que nessa encarnação nada dê certo, a incomunicação se instale, a cumplicidade não aconteça. Algum motivo há. É o destino, rarará.

Não por acaso escolhi você entre aqueles que pousaram a mão em minha cintura naquela noite. A sua era a mais quentinha. Nada a ver com destino. Coincidência ou não, você sabia dançar.

Carlota
170112

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Anfitriã (de como receber pressupõe uma predisposição da alma em sê-la)

Que não pensem os amigos que os recebo com falsidade. Entrar pelas portas da minha casa implica em ser neste momento muito querido. O coração faz festa mesmo que ela não seja. Ou seja apenas um café.

É preciso, quando se recebe, abrir bem as janelas, aspergir perfumes pela casa, ungir com óleos os pés dos convidados. É preciso aquecê-los, se faz frio, e refrescá-los, se o calor por vezes é insuportável.

Quando há na alma um bem querer expansível nesse receber, a tarde, a noite, a madrugada, viram uma coisa só. Um lapso de tempo onde ele próprio não existe.

Quando os recebo, caros amigos, é porque quis vocês com tudo o que eu tenho em mim. É porque minha alegria prevalece. É porque sou música. E ela me deixa leve. E faz ser possível arrastá-los nessa onda benfazeja de quem bate o bolo, prepara a calda, põe a mesa e faz café. Capaz de produzir entre cantos, risadas, abraços, deliciosas lolitas que derretem na boca e quase nos queimam a língua, porque a gula impele a todos a comê-las tão logo saem do forno.

Então, se recuso um convite ao recebimento, é porque hoje, infelizmente, não poderia acolhê-los. Com certeza não ofereceria nem um copo d´água, que dirá um abraço amigo. Haveria fumaça em meus olhos, as janelas teriam cerradas as suas cortinas e o sofá, a mesa, as cadeiras, não seriam os móveis que são. Antes desenhos pintados sem nenhuma utilidade.

Se tive meu coração fechado, não queria que o vissem. Precisava de uma trégua que começa apenas quando me retiro em parte do mundo. Apenas escuto e respondo e acolho as infantis vozes e apenas dos meus filhos. Suavemente, eles me tomam pelas mãos e me levam para caminhar na praia. Uma pena só ter tido dois deles hoje comigo. Queria me sentir envolvida pelos três.

E, ouvindo as conversas entre eles, me sentir amada. E, ouvindo as conversas entre eles, resvalar devagarinho pelo meu próprio caminho em uma conversinha mansa comigo mesma.

Se não os recebo ou se digo, claramente - hoje não – peço perdão. Eu nada poderia dar. Nem receber.
Carlota
150112