Uma tentativa de me libertar de qualquer doçura, mas isso já é frescura, que homem não começa texto desse jeito. Lá Mané é doce? Então, estava lendo a prosa de Rubem Fonseca, de Luis Fernando Veríssimo, de Xico Sá. Tá certo, Clarice Lispector me enreda, faz minha cabeça, mas tem horas que eu queria pensar como esses caras, sem tantos tortuosos caminhos e elaborações femininas. Sabe aquela expressão: pei, buf? Pois. Essa aí. Ir direto ao ponto. Então que vou esquecendo esse rodeio todo pra entrar no que me interessa. A teoria das caixas.
Acredito piamente que cada um deve ter uma coleção de caixas bem escondida em lugar incerto e não sabido, a não ser pelo dono, é claro, que vez por outra pode até esquecer que ela existe, mas vez em quando também amplia a coleção com uma maior, outra pequeninha, quando viu, depois de anos, já tem um acervo considerável.
São segredos. Coisinhas que você fez e não vai contar nem na hora da extrema unção. Que só você e Deus (para os que acreditam em uma força onipresente maior) sabem. A última fatia de bolo que você, obviamente, disse que não comeu. A mordida no lábio, pra sangrar mesmo, de puro ciúme. As noites rolando na cama ou esperando uma ligação. O medo de perder o emprego que você não contou a ninguém. O caso com o marido da sua amiga, da sua mãe, da sua filha. Aquela vez que você mentiu que não estava em casa, quando tinha resolvido ir pra balada sozinha. Ou a doença inventada pra queimar uma segunda feira chata, chata, chata.
Até o mais correto cidadão tem uma caixinha, vá lá. Aquele tesão incontrolável pela estagiária que, obviamente, não vai dar em nada, mas o tesão está lá, presente. O troco que esqueceu (mesmo?) de passar. O sinal vermelho ignorado. O ressentimento, a poesia escondida, o esqueleto no armário.
Alguns são mais hábeis. Ao invés de uma coleção para guardar segredos, guardam a vida em compartimentos bem lacrados, cujos conteúdos não se misturam, para não desandar. São praticamente insolúveis. E então dá pra manter uma amante e continuar casado. Dá pra ser correto no trabalho e a peste no trânsito. Ter cara de anjo enquanto come até a mulher do vizinho. Detestar alguém mas manter a casca de civilidade porque é importante para a carreira. Manter um romance na clandestinidade enquanto preserva a imagem de alguém praticamente assexuado. Pois é. Uma vida feita em caixinhas.
Vai daí que entendi uma crônica de Luis Fernando Veríssimo, sobre uma senhora casada que começou, de repente, a colecionar caixas. E aí que todos adoravam, sabiam o que lhe dar de presente de aniversário. Até o marido contribuía, parentes, amigos. De caixas de chapéu francesas a lindas miniaturas indianas. Então que um dia a polícia chega na casa e encontra o marido da fulana completamente distribuído entre as centenas de caixinhas. Em cada uma um pedacinho. E os amigos comentaram, depois de terem narrado o horror dela ter usado os presentes desse jeito: alguma ele deve ter aprontado, lá isso deve. No que eu absolutamente concordo com Veríssimo.
Carlota
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