quarta-feira, 27 de julho de 2016

Sobre minha avó

Escondeu direitinho todas as histórias de infância e adolescência que não fossem aquelas que quis contar. Teve um irmão, Daniel, uma mãe, Josefa, não sei o nome de seu pai. Trabalhou na Renda Priori, morou na rua dos Pescadores, conheceu meu avô no Batutas de São José. Tinha uma cicatriz no lábio. Quando perguntei, respondeu brusca. E não falou mais. 

Era uma mulher forte. E só reconheci fortaleza quando me peguei olhando pra trás. Quando vi a coragem que é se impor em um universo branco e masculino, onde a mulher não cuidava dos negócios e, possivelmente, era enganada quando perdia o marido.

Só reconheci a beleza arrebatadora de sua alma, quando entendi o quanto acolheu todos os amigos, as amigas, os párias, as exceções. Seguia firme e só cambaleou quando as pernas começaram a doer.  O passo ficou pequeno, inseguro, e seu ir e vir “à cidade” mais espaçado.

Nunca foi de chamar pra cozinhar. Não suas netas, pelo menos. Nunca foi muito de macaxeira. Antes cuscuz ensopado, banana comprida, fatia parida, sopa de feijão. Entrava na cozinha e o almoço saía na hora. E fui aprendendo a cozinhar de tudo, sem medo. Ela conduzia.

Ninguém a enrolava no troco. Tinha só o quarto ano primário e dizia sempre: estude pra ser gente. Olhando pra trás e pra frente, cada vez que fui a um museu e me deparei com uma obra de arte; cada vez que vi o mundo em uma nova cidade; cada vez que venci uma etapa – uma delas no dia de seu aniversário – era dela que eu lembrava.

Foi pra Dona Creusa que corri no primeiro emprego, quando ainda tinha dúvidas. Foi a primeira que soube do primeiro bisneto. Era no espaço de sua cama solteirão, ao lado dela, que eu ficava pra curar as feridas ou falar das coisas da vida.

Era escorpiana de 24 de outubro, nasceu em 1919. Quando morreu, quase não tinha brilho nos olhos. Dois anos antes tinha perdido o caçula. Aquele pra quem tinha o jeito mais amoroso. E de quem sentia falta todo dia.

Tive a sorte de contar com seu afeto na infância e na vida, de pousar a cabeça no travesseirinho feito na barriga, de ter aprendido o nome das ruas do centro do Recife de tanto visitar as lojas que hoje nem existem mais.

Da senhora, Dona Creusa, ainda queria a convivência com os bisnetos. Eles iam aprender direitinho o que é ter uma avó de implicar brincando, de costurar vestidos, de avisar que o mundo é grande e a gente cabe nele. E, hoje ainda, quando escuto a ave maria, lembro de quem me ensinou a viver. A benção, minha vó.

Carlota
27072016

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